Ignora, ignora...

Almoço de domingo, feriado de 12 de outubro. Além da família, a sogra, que veio passar uns dias com eles.

De repente comentam que decidiram dar o violão do filho para o primo dele, que há tempos queria e que não tinha conseguido ganhar.

- Vou dar uma dica - diz o pai - diz pra ele não deixar o violão no sol senão o tampo empena, como já aconteceu com o violão dele (do filho) certa vez.

- Empena? Meu violão nunca empenou - rebate o filho.

- Lógico que empenou, não lembra? - defende o pai.

Mãe, filha e filho replicaram em uníssono.

- O violão nunca empenou...

Então o filho dá seu golpe de misericórdia.

- Ignora, ignora... - como se dissesse pra todos não darem muita bola para mais uma asneira solenemente proferida pelo chefe da casa.

Se estabelece certo clima na mesa diante da cena constrangedora para o pai que, a exemplo de outras situações com reação semelhante, coloca seu rabo entre as pernas e continua a refeição.

De fato o violão empenou. Só que foi a 40, isso mesmo a qua-ren-ta anos, quando aquele homem hoje grisalho com 57 anos era um rapaz ainda menor de idade.

Sua cabeça resgatou aquele acontecido tão distante e o "datou" como algo bem mais recente e fez com que proferisse aquele comentário infeliz com a "segurança" de Deus assumindo a paternidade de sua criação.

Aquele "ignora, ignora..." do filho primogênito, no pedestal que seus 19 anos o colocavam, traduziu com absoluta maestria o pensamento dos demais membros da família, de certa forma acostumados, mas sempre inconformados, com os absurdos falados ao longo dos dias de convívio.

Possivelmente não se deram conta de que aquele comentário inadequado foi produto de um problema na cabeça do pai que o faz confundir, regularmente, datas e cenas vividas.

Isso atrapalha bastante tudo na sua vida, dá pra imaginar quantas "bolas fora" vem sendo dadas desde sempre, tornando-o vítima de bulying bem antes desta palavras nascer.

As pessoas rebatem este tipo de atitude com impiedosa chacota e nunca se dão ao trabalho de pensar que não é apenas um comentário infeliz, mas a manifestação de um problema de sinapse possivelmente originado seu parto, no qual ocorreram sérios problemas e que podem ter danificado alguma parte dos seus bilhões de neurônios de forma irreversível.

O reflexo desta fatalidade vai perdurar até que aquele homem venha a dar o seu derradeiro suspiro.

- Ignora, ignora... -

O pai certamente nunca vai esquecer deste comentário tão carinhoso, pertinente e respeitoso do seu filho mais velho.

Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 12/10/2015
Reeditado em 12/10/2015
Código do texto: T5412478
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