Aprendendo psicologia no boteco
Já conheci muita gente nessa vida, e tenho certeza duma coisa; quem tem muito, mostra que tem pouco; quem tem pouco mostra que tem muito. Nesses botecos da vida, conheci muito cara rico. E também já conheci muito analfabeto que tinha uma experiência de vida enorme.
Na maioria das faculdades e cursos de Psicologia, o primeiro tópico que eles abordam é o do senso comum. É aquela famoso conhecimento decorrente da experiência vivencial do indivíduo, que acaba virando uma ''psicologia'' livre de demagogias e termos técnicos. Assim como nos dizemos ás vezes ''aquele vendedor usou de psicologia pra convencer!'' ou até mesmo ''Rapaz, mas que advogado perspicaz e manipulador! Usou da psicologia para convencer o juri!''
E então neste boteco, conheci o seu Francisco. Sentado numa mesa de canto, ia pontualmente toda meio-dia no bar do Pé Sujo, pedia sua cachacinha e uma tripa de porco assada. Assistia ''vale a pena ver de novo'', sempre no seu cantinho, em silêncio. O povo dizia que ele era homem muito rico, mas que toda sua aposentadoria ia pros filhos que estavam em outros estados. Seu Francisco morava só, numa casa bem simples, quase como uma cabana. Raramente saía pra comprar alguma coisa, de vez em quando alguém ia saber como ele estava, outras vezes os moleques da rua jogavam pedras.
E então, naqueles dias que nossa emoção está maior que a razão, decidi pedir uma cachacinha com limão junto com duas tripas de porco. Lembrei de quando meu tio fazia assada no carvão e falava 'Tem um gostinho de coco mas o trem é bão!'. E resolvi puxar assunto com seu Francisco. Quando dei boa tarde, eles passou bem uns dois minutos sem falar nada, olhou pra baixo, e então começou a falar, para o meu espanto e de todos que estavam no bar;
'Desgraça. Fala cum migô não fi. Cansei, quem é você? O que qué comigo? Deixe em paz. Fi não vem... Fi não vem me ver. Fi é ingrato, arranjô muié esqueceu do pai, só liga quando qué dinheiro
Tenho dinheiro não fi, óia o ladrão, óia o ladrão. Tripa é bom, tripa é bom...'
E foi falando, e falando... Eu apenas olhei, com compaixão para mais um caso de um pai abandonado pelos filhos, vítima da insanidade e demência típica dos senhores solitários... abandonado por todos. Naquela triste idade da vida aonde quase não se tem amigos, pois todos já estão mortos. Ou parentes próximos, pois quando não estão mortos, estão afastados. Mas C'est La Vie, feliz daquele que tem uma boa velhice.
Sempre ando com uma caderneta no bolso e uma caneta. Não curto fazer anotações em celular até mesmo pois depois dessa onda de todo mundo ter isso no bolso, o governo passou a espionar todo mundo. Põe um numa lista, põe outro em outra, antigamente fulano tinha nome, hoje tem número. Digo isso com propriedade pois trabalho 47 anos em um órgão público ligado ao serviço de inteligência e também sou formado em Marketing e Propaganda. E como bom ''marketeiro'', sei que pesquisa de mercado é tudo para decidir os rumos de um bom investimento. Pra que gastar mais com pesquisadores de rua sendo que pode gastar bem menos acessando bancos de dados de redes sociais e saber preferências de um determinado público-alvo?
Então, de tempos em tempos quando via alguma coisa interessante no que estava sendo dito pelo seu Francisco, eu anotava.
Pontos interessantes;
''Sô rico não minha fia me deixa em paz''
''Panela quebra panela quebra... olha o véi doido, olha o véi doido... sim, vem. òia o véio doido...''
''É esse véio ai cheio da grana e os filho rouba tudo''
Analisando tudo que ele me disse, percebi que de certa forma ele estava repetindo coisas que dizem para ele diariamente, misturado com recordações e o fato que era muito isolado, ninguém falava com ele. Então, continuei copiando os pontos interessantes, e resolvi enviar para um amigo que era metido à psicólogo (nunca pisou numa universidade, mas segundo ele o ''senso comum'' era mais verdadeiro que um conjunto de conhecimentos ultrapassados e que precisam de uma reforma urgente).
Ele escreveu isso de forma de textículo, meio que um ensaio, vai entender.
''A diferença entre Inveja e Recalque
Inveja é quando você vê aquele cara com uma mulher espetacular do lado dele, daí você faz uma expressão de raiva nos olhos e o encara, ou deseja ter aquela mulher.
Recalque é quando você vê alguém em uma biblioteca estudando, e inconscientemente se sente um lixo por nunca ter lido mais que dez livros na vida.''
Bom, eu de psicologia não entendendo nada. Mas beijinho no ombro nunca mais será a mesma pra mim depois desse exemplo de ''senso-comum'' do povo...
''O preconceito é o bom senso dos pouco inteligentes''
Autor desconhecido.