O Ponto de Ônibus
A vida de seu Emanuel era bela. Ele cantava Caetano Veloso no chuveiro todas as noites, se divertia fazendo palavras cruzadas e recebia velhos amigos pra jogar xadrez e beber uma pinga em sua casa aos finais de semana. Ele jamais pensou que um dia sua paz seria abalada por um simples ponto de ônibus.
Mais foi isso que aconteceu quando sem nenhuma consulta a ele ou aviso prévio a empresa de ônibus da cidade resolveu instalar um ponto de ônibus em frente a sua casa.
Desde então era acordado antes das seis da manhã todos os dias pelo barulho do ônibus estacionando, e não conseguia voltar a dormir, pois de vinte em vinte minutos parava um novo ônibus ali. Eram dois ônibus que passariam a pegar passageiros naquele local.
Mas isso não era o pior.
As pessoas que pegavam o ônibus faltaram na aula de etiqueta e boa educação e infestavam a frente da casa de Emanuel com bitucas de cigarro, latinhas, embalagens de bolachas, salgadinhos e outros lixos.
Outros eram ainda piores e mijavam nos muros da casa de seu Emanuel.
O ponto infame estava a menos de um metro do portão de entrada da casa. Chegava ao ponto de ter tanta gente esperando ônibus ali que Emanuel ou suas visitas precisavam pedir licença para entrar em sua própria casa.
A sensação de privacidade ao estar na sala de estar e na copa havia se dissipado, pois com a janela aberta e sem as cortinas as pessoas poderiam acompanhar tudo o que se passava dentro desses cômodos da casa de Emanuel. Ele se sentia observado quando estava sentado no sofá da sala, que ficava próximo a janela, assistindo televisão. Não era raro ele olhar pela janela e encontrar um par de olhos fitando o seu próprio.
Com o tempo passou a deixar as cortinas fechadas, e começou a sentir vergonha de receber seus amigos com o que dantes fora sua calçada bem cuidada agora em verdadeira imundícia. Parou de cantar Caetano no chuveiro, com vergonha de que alguém no ponto o ouvisse.
A sensação de incomodo não passou e ele resolveu tentar dar um jeito nisso. Ligou para o número de reclamações da prefeitura solicitando a remoção do ponto de frente a sua casa, contando todos os motivos que o levaram a fazer a ligação. A moça do outro lado da linha disse ter feito um protocolo e pediu para Emanuel anotar o número. Assim ele fez, mas os dias passaram e não houve nenhuma ação por parte da prefeitura.
Emanuel não desistiu. Dessa vez ligou para a empresa de ônibus, ganhando em troca uma risada e a resposta de que não haviam leis contra a construção de pontos de ônibus em frente a calçadas, desde que não haja nenhuma entrada de estacionamento, o que era o caso de Emanuel, que não tinha carro.
Não dando-se por satisfeito, ele retornou a ligar para o número de reclamações da prefeitura. A moça perguntou se ele já havia feito um protocolo. Ele respondeu que sim, e passou o número do mesmo. Ela então o avisou que não havia mais o que fazer a respeito, uma vez que o protocolo já havia sido feito.
- Pra que serve esse protocolo afinal? Vocês vão fazer alguma coisa? Ou isso é só enganação? - questionou Emanuel já exasperado.
- Não estaremos averiguando os motivos de sua queixa e estaremos mandando uma resposta. Basta aguardar, sr. Emanuel.
Passou a ligar diariamente para a prefeitura para saber do andamento de seu protocolo. Algumas moças do outro lado da linha já até o reconheciam. Um dia ouviu uma delas dizer baixinho para alguém do lado: "É aquele Emanuel do ponto de ônibus de novo.".
Mesmo com sua insistência nada acontecia, apenas passaram a dizer que ao invés de ainda averiguarem, já estavam averiguando, e pediam para ele esperar, e assim o ponto continuava lá.
Emanuel já não sabia mais o que fazer e confidenciou sua situação a um de seus amigos, que lhe disse:
- Desista Emanuel. Olhe a sua volta, veja nos noticiários, o Brasil tem muitos problemas de infraestrutura que ninguém resolveu até hoje, não vão resolver o seu também.
Emanuel ficou matutando sobre isso e chegou a conclusão de que seu amigo tinha razão.
No outro dia Emanuel levantou cedo e foi a uma loja de construções. Ele já havia feito alguns trabalhos de pedreiro na adolescência e juventude para ajudar a subsistência de sua família e tinha alguns conhecimentos sobre o assunto. Comprou o que precisava.
Voltando para casa foi direto ao ponto. Acabara de passar um ônibus levando todos os passageiros e o local estava vazio como ele queria. Com uma trena mediu a distância de um pilar a outro do ponto e depois com uma britadeira ele cavou o chão ao redor dos pilares que sustentavam o ponto de ônibus, até chegar ao final deles. Aos poucos o ponto de ônibus foi ruindo até ficar um pouco inclinado, mas ainda de pé.
Depois preparou uma massa de cimento, pegou sua britadeira juntamente com um saco de lixo e se encaminhou pela quadra. Há alguns metros dali, passando por algumas casas, havia um terreno baldio ocupado apenas por alguns escombros do que um dia fora uma casa. Sua frente está vazia. Pegou a trena e utilizando a medida da distância entre os pilares previamente anotadas num papel fez duas marcas no chão. Ao redor dessas marcas utilizou sua britadeira para abrir dois buracos.
Voltou ao ponto. O empurrou até ele desabar no chão, depois, com um pouco de dificuldade, o aposentado foi puxando o ponto de ônibus até os dois buracos que ele próprio havia cavado em frente ao terreno baldio.
Colocou os pilares dentro dos buracos feitos. Andou alguns metros até sua casa e em um carrinho de mão levou a massa de cimento que havia preparado a pouco para onde estava o ponto. Jogou a massa ao redor dos buracos e cuidou para que os pilares fossem petrificados em uma ângulo perfeito de noventa graus, os segurando até eles ficarem finalmente parados no ângulo correto.
Fez os últimos retoques no chão para nivelá-lo ao nível da calçada, juntou os entulhos da obra no saco de lixo e com o resto da massa tampou os buracos abertos aonde pouco tempo antes havia um ponto de ônibus, na frente de sua casa.
Então finalmente Emanuel limpou as mãos satisfeito olhando para o resultado de sua obra.
No começo, os passageiros habituais estranharam a mudança do ponto para um pouco a frente, mesmo assim resolveram esperar o ônibus lá. Os motoristas também estranharam, pois não haviam sido informados desta pequena mudança pela empresa, mas mesmo assim pegavam os passageiros onde agora estava o velho novo ponto.
Após limpar a emporcalhada calçada, Emanuel plantou uma árvore no local onde antes estava o ponto, para garantir que não colocariam nada mais lá. Árvores tinham proteção ambiental e para derrubá-las seria necessário uma imensa papelada burocrática e dispendiosa que a empresa de ônibus certamente não estaria interessada em bancar.
Isto é, caso se importassem e sequer notassem de fato a pequena mudança, mas pareciam não se importar com nada desde que o dinheiro das passagens entrassem em seu caixa.
E assim Emanuel reobteve sua inestimável paz. Abriu as cortinas, ligou a televisão, e enquanto passavam as propagandas fez sossegadamente seu bom e velho jogo de palavras cruzadas.