ESCREVER O SILÊNCIO
ESCREVER O SILÊNCIO
Ligar a máquina de escrever nessa noite... Ah
não. Ela faria um grande barulho no meio
destes silêncios silenciados pela madrugada,
pelos repousos esvoaçantes, pelos sonos e seus
donos. Gostaria de ligar a máquina para
escrever. Mas não! Há um silêncio muito
apreciável; um silêncio que não deve ser
perturbado.
Sou como um deus ora ciente deste silêncio
cujo poder tenho de rompê-lo. Por enquanto,
sou uma divindade benevolente; cúmplice
desse outro silencioso poder até então por
mim ignorado.
Ouço o respirar descompassados dos humanos
entregues aos braços de Morfeu em sua
destreza de adquirir qualquer forma humana e
surgir nos sonhos desses seres tal qual a
pessoa amada pelo incauto sonhador. Ouço o
pulsar do coração como se fora o tic-tac do
relógio aguardando o dia que parecerá mais
novo que seu habitual.
Esses silêncios sempre me lembraram morte
adormecida. Antigamente pensava inclusive que
o silêncio apenas tivesse um lado oco. Agora
percebo que pode ser o preenchimento dos
fragores, da inutilidade dos pronunciamentos
retumbantemente inúteis.
Sou um deus por demais onipotente.
Entretanto, hoje, demasiadamente humano,
nem lamento: não posso despedaçar o silêncio
da noite de sonhar com a minha máquina de
escrever sonhos.