Muita Saudade

                              

                                            "Não reconhecemos os momentos
                                      realmente importantes da vida até ser
                                      demasiado tarde." Agatha Christie
 

                              Esta é uma crônica de 2010. Mas como faço sempre, altero alguma coisa, acrescento outras. É uma espécie de atualização, já que o mundo não para.
                     Àgatha Cristie dizia em suas autobiografias que nossas lembranças talvez não interessem a ninguém. No entanto, dizia ela que relembrar é uma necessidade e uma delícia para quem ficou mais velho.
   
                     
                        
 Hoje amanheci com vontade de falar de pessoas, que  por uma razão ou outra deixaram  em mim alguma marca.  E elas surgem no atropelo, sem muita lógica, como uma onda do mar, me dando um banho frio e revigorante.  Vem  logo à minha mente o Miguel Vovô, remador do Vasco, preocupado em ter boa saúde física e mental, fazendo as ginásticas do Charles Atlas e lendo “a arte de fazer amigos”. Rapaz trabalhador, ajudava o pai num bar de Copacabana, sempre me oferecendo um copo de leite, quando por lá passava “suando em bicas”, de tanto andar de bicicleta.                         E aquela moça rica, que mal conhecia, sempre bem vestida, um dia, horrorizada, me perguntou o porquê de eu  só usar a camisa pra fora da calça.
                      E o Romeiro Neto, rapaz calado e sempre sério foi, sem saber, quem me arrancou minha melhor gargalhada, que jamais esqueci. Na aula de filosofia, livro aberto na sua carteira escolar, o título do texto era: “Bucólicas”, não me lembro mais se era do poeta romano Virgílio. Pois não é que o Romeiro, sempre sizudo, tinha riscado com a caneta a primeira sílaba da palavra e lá estava, somente no livro dele,  lógico, em  letras graúdas: “CÓLICAS”.
                  Falando em filosofia, passei a amar esta matéria, pois foi um encantamento para mim as aulas do Professor Lemos. Adolescente ingênuo,pensava que o professor tinha o segredo da vida e não entendia porque a maioria dos alunos não gostava de filosofia.  O Cézar Oiticica, o expoente do ginásio. Nosso colégio estava decadente e perguntei ao Oiticica porque ele não estudava em um colégio melhor, já que ele era um aluno excepcional. Veio a resposta rápida: “posso estudar num colégio ruim, porque o aluno é quem faz a escola”. Soube depois que a família era de gênios, seu avô, o maior gramático de sua época, o grande José Oiticica. Seguiam a filosofia anarquista, não acreditavam em governo nenhum e muito menos em escolas, sabiam se autodeterminar.  Que exemplo de independência! Quem sabe não está aí a chave para mudar o mundo, imaginava eu ingenuamente. 
               Os  inspetores de turma, Ruy e Raimundo.  O Ruy era o bom. Raimundo, o mau. Eram irmãos e tão diferentes. Podíamos chegar atrasados na primeira aula, apenas uma vez na semana. Quando me atrasava pela segunda vez na mesma semana, jogava minha pasta por cima do muro,  e esperava um pouco.Se a mala viesse jogada de novo para a rua, não tinha jeito, era o Raimundo quem estava do outro lado da mureta.                   Se a pasta não voltasse, ato contínuo pulava eu o muro, pois sabia que do outro lado estava o Ruy, fingindo que não estava vendo, e eu sorrateiramente penetrava na sala de aula, que alívio!
           O Luís Affonso, que quase brigou comigo quando soube que eu e mais cinco colegas  tínhamos sido suspensos por uma semana inteirinha.  Denúncia do Raimundo, o mau! Seguinte: há um mês que eu estava liderando um movimento de rebeldia, achando que nós, adolescentes, nos aproximando dos dezoito anos, na verdade estávamos entre 16/17 anos, poderíamos sair do colégio na hora do recreio e tomarmos um cafezinho no bar da esquina, abandonando o colégio, pois, afinal, já tínhamos responsabilidade. Imediatamente, Mário Fulgêncio, Carlos Eduardo Jardim, Miguel, Mozart e Oscar toparam. O Luiz Affonso não estava presente nesta hora e ficou de fora do plano. Aproveitando um cochilo dos inspetores, num piscar de olhos nos encontrávamos no bar, tomando aquele cafezinho, quando surge a figura sinistra do Raimundo, com papel em punho e mais a  caneta e gritando: “peguei vocês, já estou anotando: Gilberto Dantas, Mário Fulgêncio, Jardim, Mozart , Miguel e Oscar. Podem se apresentar ao Diretor”. Resultado: uma semana de praia “forçada”, pois saíamos de casa como se fossemos para o colégio, com aquele medo dos pais desconfiarem. Já o Luiz Affonso, filho de psicanalista, gozava de uma educação libertária, que começava a ser moda naqueles tempos,  para ele seria uma  “boa” aquela semana de férias e sem precisar esconder do pai esse fato, que gostoso!  
               Ah! não poderia deixar de me lembrar da Heloísa. Sentava-se na carteira em frente da minha. Loura, muito bonita, espírito muito alegre, vestidos sempre decotados e costas nuas. Era irresistível, passava as aulas todas coçando as suas costas e muitas vezes, no ouvidinho dela contando piadas picantes. É preciso entender, afinal estava com 17 anos, testosterona à flor da pele, gente! E, a bem da verdade, não havia má intenção, o que eu queria era só brincar. E ela, garota legal, ria muito, não me dava lições de moral. Acabei deixando essas brincadeiras inocentes de lado, quando um dia soube que a Heloísa tinha um noivo, bem forte, com seus 25 anos. O medo falou mais alto, o melhor era não arriscar.
                  E a Eley, irmã do Luiz Affonso, o filho do psicanalista, muito preocupada com sua magreza, tomando toddy todo dia. Não fiz por menos, comprei para ela um latão de 10 quilos de toddy. Não adiantou, continuou magra. Qual o sentido dessas doces recordações, às vezes me pergunto, e não encontro respostas. Servem para alguma coisa? Iluminam o meu caminho? Minha amigas e amigos sentiriam alguma graça, alguma orientação para suas vidas, alguma ternura? Sinto que essas lembranças e muitas outras mais, para o bem ou para o mal, jamais me deixarão,  porque já fazem parte do meu ser. Só espero que alguém muito jovem não me pergunte se me recordo da batalha do Marne (batalha que antecedeu a primeira guerra). Desculpem-me os mais jovens, mas minhas queridas lembranças ocorrem depois da segunda guerra mundial.




Nota:  Darei folga aos meus leitores e leitoras, por ser obrigado a me ausentar neste fim de ano.

                         
 
Gdantas
Enviado por Gdantas em 11/10/2015
Reeditado em 11/10/2015
Código do texto: T5411150
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