UM GRÃO DE AREIA SOPRADO AO VENTO

Hoje fiquei a meditar naqueles autores que possuem o dom de nos transportar para mundos distantes. E, ao mesmo tempo, para tão perto das nossas insondáveis profundezas. Na minha infância, tão logo aprendi a ler, pus-me a viajar em alguns autores assim, que produzem um texto mágico. E quando os lemos ficamos extasiados. Algo lá por dentro de nós brilha. E, diante de tanta beleza, pouco nos resta dizer. Mas muito o que sentir. Textos de pura emoção, surpresa, encantamento. Ah, como eu queria ter uma bota de sete léguas e um amigo tão esperto quanto o Gato de Botas! Quem nunca se imaginou um príncipe a despertar, com um beijo, a Bela Adormecida ? Quem nunca se viu a passear pela floresta, fugindo do Lobo Mau e a comer um pouco daqueles doces da cesta da Chapeuzinho? Ah, que o mundo dos espelhos de Alice ainda hoje refletem na minha lembrança. Eu me imaginava a subir até o céu num mágico pé de feijão, para ter a leveza de passear por entre nuvens de algodão.

Dei a volta ao mundo em oitenta dias com Julio Verne. A bordo do Náutilus, tendo o Capitão Nemo como guia, mergulhei mais que vinte mil léguas submarinas. Conheci alguns dos segredos de uma Ilha Misteriosa e aportei, sob a batuta de Robert Louis Stevenson, na Ilha do Tesouro. Eu desejava um mundo organizado como aquele da Utopia de Thomas Morus! Viajei com Jonathan Swift até Lilipute junto com Gulliver. Vi homens pequeninos e homens gigantes.

Diante de textos assim, de tal magnitude, a prudência recomenda o curvar e o reverenciar, feito silêncio e carinho de estrelas ou magia de luar. Depois, ficar deitado numa rede com os olhos a percorrer avidamente todos esses mundos revelados nas páginas dos livros. Quem nunca lutou com moinhos de vento e nem cavalgou o rocinante da leitura e desejou ter uma musa tão singela quanto uma Dulcinéia de Toboso? Lembro-me de ter percorrido todo o rio Mississipe junto com Tom Sawyer e seu amigo Huck Finn, através da magia da escrita de um Mark Twain. Oscar Wilde me fez sentir arrepios e assombros com o Fantasma de Canterville. E Edgar Alan Poe? Quem nunca sentiu um frio na espinha ao se deparar com o universo sombrio e cheio de mistérios daqueles mundos de terror? Atravessei os céus junto com o Barão de Munchausen, montado em balas de canhão. Cavalguei batalhas junto com os doze pares de França, os nobre cavaleiros de Carlos Magno, da Canção de Rolando, massacrados na Batalha de Roncesvales e, depois, vingados pelo seu rei. Quanta magia nessas histórias que mexiam com a minha imaginação e me fazíam cavalgar pelos reinos encantados tão distantes, tão próximos dos meus olhos de leitor ávido. Quis ser Teseu e enfrentar o Minotauro. Voar como Ícaro, mas tomando o cuidado de não chegar muito perto do sol. E ter asas mais fortes. Feito as asas de um Pégaso. E dobrar o arco de Ulisses, que resistiu ao canto das sereias para chegar a tempo de retomar seu amor pela tecelã Penélope.

Existem uma infinidade de autores, criadores de uma extensa galeria de personagens que povoaram meu mundo de leitor inaugurado na fantasia. Mil e uma histórias, mil e uma noites de magia na voz cadenciada de Sherazade e nas narrativas de um Marco Polo. Viagens e mais viagens. Ler é viajar. Ler é se aventurar e percorrer caminhos inusitados. Plenos de seres mágicos, mitológicos, reis, rainhas, princesas, dragões, bruxas e fadas, anões e gigantes, anéis mágicos, cabeças medeias de serpentes a serem cortadas. E romeus e julietas e megeras a serem domadas.

A gente vai crescendo e descobrindo, a cada dia, outros autores. Tive a alegria de me deliciar, contemporaneamente, com a magia dos escritos de uma Marina Colasanti, ela mesma uma tecelã de tantas tramas que nos encantam. E ver o mundo pelos “olhos de vidro” do avô de um Bartolomeu Campos de Queirós. E descobrir que, nessa vida, até pasasarinho passa. Aprendi a amar a Fada Fofa de Sylvia Orthof e a me encantar com tudo o que cabe dentro de uma bolsa amarela de uma Lygia Bojunga, uma de nossas premiadas com o Hans Christian Andersen. O mesmo prêmio que recebeu Ana Maria Machado, a autora de Bisa Bia, Bisa Bel, revelando, dentre outras coisas, os segredos de se aprender a namorar, artimanhas passadas de avó para neta e avançando nas gerações. E conhecer a mocinha do mercado central que não é a Elvira Guiomar, mas que tem em comum a pena mágica de Stella Maris, a registrar histórias nos moleskines da vida.

Ainda hoje sopram em mim os ventos uivantes dos morros de Brontë, livro lido em tenra infância. Tive a grande alegria de percorrer as ruas de Dublin sob a visão arguta de Joyce em seu Dublinenses. Fui visitar os vivos e os mortos da Comala de Rulfo, sentindo-me também um dos órfãos de Pedro Páramo. E todo o realismo mágico me trouxe cem anos de alumbramento em García Márquez e me senti na sua Macondo e também na Antares de Veríssimo, o mesmo que criou um certo capitão que tem o nome do meu filho Rodrigo e uma Clarissa, quase o nome de uma das minhas netas. Quem nunca se encantou à sombra literária de pés de laranja lima? Quem nunca se imaginou feito um barão nas árvores, partido ao meio, um cavaleiro de elmo vazio a percorrer cidades também invisíveis na leveza de um Ítalo Calvino? Quem nunca se fez capitão de areia, amado e temperado em cravo e canela? Sei que fui também Riobaldo, ao lado de Diadorim, a cavalgar os grotões dos mundos sem fim dessas veredas onde nos perdemos e nos achamos a trilhar grandes sertões de Rosa. E, feito menino-bezerro, ouvimos conversas de bois, e viajamos junto com defunto e rapadura em carros de boi em estradas de poeira e lembranças.

Na mesma linha de encantamento, chegam-me as vozes d`África, a magia do universo que desfralda Mia Couto em sua Terra Sonâmbula, onde as leoas também se confessam, onde há venenos de Deus e remédios do diabo no fio das missangas e a perfumada brisa que sopra dos frangipanis.

Sei que há um universo literário mais ou menos comum a certas gerações. Eu prezo muito o que li e sei da importância que todos esses livros, autores e personagens tiveram na minha formação. Não foi minha pretensão mencionar todos aqui, pois seria uma lista quase interminável. Destaquei alguns, mais com os olhos do coração. Eu os coleciono, sim, e outros mais. São amigos de todas as horas. São feito pássaros com asas de infinito a me transportar em viagens de nunca se acabar. Nesse voo, sinto-me como um grão de areia soprado ao vento. E levo comigo tesouros, imensidões.

José de Castro
Enviado por José de Castro em 09/10/2015
Reeditado em 18/12/2015
Código do texto: T5409451
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.