Diário de Sonhos - #100: Possuído
Há alguns anos venho escrevendo aqui sobre meus sonhos. Na verdade, quase sempre pesadelos. Nunca liguei muito pra isso. Na verdade até gostava. Já tive diversos tipos de sonhos. Sonhos sinestésicos, lúcidos. Umas três vezes sonhei com coisas que aconteceram no dia seguinte. Já vi uma imagem do sonho se materializar por alguns segundos bem aos meus pés na cama logo após despertar. Enfim, se hoje chego ao centésimo sonho escrito, é porque me lembro de pelo menos cinco vezes mais isso (ainda que vagamente).
A frequências destes sonhos era alta. Numa semana conseguia me lembrar de uns quatro sonhos. Mas depois que comecei a trabalhar estes sonhos foram minguando. Raramente conseguia me lembrar de algum. Comecei a deixar isso pra lá.
Recentemente, mais especificamente em junho deste ano, tive uma embolia pulmonar e por pouco não morri. Algumas semanas depois de sair da UTI os sonhos começaram de novo. Infelizmente não dei a devida atenção a eles. Negligenciei e não os anotei. Muitos sonhos estão perdidos para sempre por puro relaxo e preguiça.
O sonho que eu tive hoje é difícil relatar. Foi simplesmente a coisa mais apavorante e real que já tive na minha vida. No sonho eu tinha total controle das minhas ações e tinha sensações físicas. Outra coisa que devo citar antes de falar sobre o sonho é que não sou cristão, tão pouco ateu. Sou agnóstico. Não acredito e não desacredito em nada.
Sonhei que estava na minha casa, completamente escura. Era noite. Estava junto de um colega de trabalho, o Alex. Resolvi mostrar um caderno com desenhos que eu fazia. Numa das páginas estava uma figura adornada com centenas de olhos. E apesar de ser um desenho, uma figura num papel, os olhos se mexiam. Abriam e fechavam. Acompanhavam o movimento do meu dedo contornando a folha. Alex comentou "Sai fora, isso é coisa do diabo!". Eu tinha uns instrumentos musicais vivos. Qualquer coisa que eu perguntasse eles me respondiam. Tive vontade de ir até eles e perguntar se aquilo realmente era o diabo, mas a verdade é que longe de ter medo eu estava fascinado com aquilo. Logo percebi que eu tinha um poder de transformar em tridimensional qualquer figura numa folha de papel. Isto é, com minha vontade eu podia girar uma figura e até mesmo mudar o ângulo da câmera na foto. Brinquei por muito tempo com isso e acabei adormecendo, com o caderno dos olhos no meu peito.
Pouco depois acordei na madrugada. Sentia-me mal. Sintomas muito parecidos com o da embolia pulmonar. Primeiro um peso no peito. Em seguida falta de ar. Desespero, angústia, medo. Calor, muito calor. Mas não podia me mexer. O livro permanecia aberto sobre meu peito, e parecia pesar muito. Muito escuro, algo de sinistro no ar. Uma presença invisível. Uma dor aguda no lado esquerdo do peito. A audição fica ruim, os sons somem. Nem todos. Um som muito grave e constante, quase inaudível, se faz presente. Parece respiração de uma fera. Sinto o corpo ficar dormente. Parece que estou sendo possuído por uma força invisível. Finalmente entro em pânico e começo a me debater. Minha vista alterna entre momentos de movimento e momentos de imagem congelada, igual um computador ou um filme em DVD quando começa a dar pau. Nos breves momentos em que há movimento avisto uma sombra muito alta e muito grande num canto da parede. Sinto que é o diabo me possuindo. Reúno o pouco de coragem que me resta e o invoco e o desafio. A presença parece satisfeita com a contenda e investe com mais força. Meu corpo se retorce. Está quente, muito quente. A visão trava toda hora e perco a noção de espaço. Só consigo sentir dor, calor e uma crescente dormência. Começo a gritar: FORA DE MIM! FORA DE MIM! Minha voz soa como duas, uma aguda e triste, a outra grave e potente, como voz de leão. Luto, grito. FORA DE MIM! FORA DE MIM! Mas a batalha já está perdida e tudo o que eu faço é adiar a derrota. Meu corpo começa a se movimentar contra a minha vontade. Primeiro uma perna, depois um braço. Sento-me na cama (ou me sentam).
Num dos flashes de movimento diviso uma figura familiar. Um corpo magro. Camiseta preta de rock, calça jeans, cinto punk e uma corrente no bolso. É minha antiga amiga Cris. Não vejo seu rosto, mas sei que é ela. Corre em minha direção. A visão trava numa imagem dela vindo em direção a mim. Em nenhum momento vejo seu rosto, mas sei que é ela. Sinto que é. Não sei como, apesar de todo meu corpo estar agindo contra minha vontade, consigo libertar meu braço esquerdo. Estico ele ao máximo e espero que ela segure minha mão e me puxe. Mas isso nunca acontece.
Acordo. Não consigo me mexer. Estou paralisado. Respiro com dificuldade. Uma dor aguda no peito. Suor, intestino preso, dor nas costas, medo. Após alguns segundos consigo mexer meu corpo. Olho em volta. Estou sozinho em casa. A imagem do sonho ainda é muito forte. Assustou-me mais do que tudo. Nunca tive um sonho assim. Nunca. Já tive sonhos fortes, mas nada como isso. A sensação que permaneceu por horas após despertar era muito ruim.
Oito de outubro de dois mil e quinze.