Morte em pleno sábado
Hoje me deparei com uma foto simples que estourou meus miolos por cinco segundos. Uma foto pouco nítida. Pude ver uma janela grande, branca, com uma fina veneziana por onde escapava a luz, iluminando um pequeno espaço. No peitoril dela, encontravam dois grandes potes de vidro, lado a lado. Ambos estavam etiquetados.
No pote à direita, havia um pequeno buquê de flores brancas, delicadamente envolvidas por folhas verde-escuras. Na sua etiqueta, escrito à mão em lápis azul e aos garranchos, estava a palavra Vida.
No pote à esquerda, havia apenas folhas verde-escuras, assim como no primeiro, mas sem as flores. Estavam colocadas de pé, na mesma posição das flores do primeiro pote. Sua etiqueta, com o mesmo garrancho azul, dizia Morte. A imagem turva estourou meus miolos por ser tão simples e criar uma metáfora tão forte.
A maioria das pessoas simbolizaria a morte com um buquê de flores murchas. De alguma forma aquela foto me disse que a vida continua.
O que esteve em volta continua. Você morreu. Não deu tempo de tirar as roupas do varal, de dar uma última ligação pra sua mãe e de alimentar o passarinho. Você estava no lugar errado, na hora errada... Ou seria no lugar certo, na hora certa?...
A vida continua. O trânsito continuará fluindo – ou continuará congestionado. As folhas verde-escuras continuarão crescendo, junto com seus filhos. A chuva continuará chovendo. O carteiro continuará passando. A porta continuará rangendo. Você seria mais um nome do jornal, mais um nome em algumas orações e comentários, em algumas bocas. Um nome a mais tatuado numa lágrima. E algo tomará o seu lugar. O seu vazio. A sua cadeira. A sua poltrona preferida. O seu cantinho. A sua mesa de bar.
Lembrou-me parte da música de Chico Buarque, Construção: "(...) Morreu na contramão atrapalhando o tráfego... Morreu na contramão atrapalhando o público... Morreu na contramão atrapalhando o sábado...". Porém, não se preocupe: você continuará vivo nas memórias. Talvez nas pequenas coisas: terá um fio de cabelo seu em algum lugar desse mundo. Talvez nas grandes: terá um filho seu em algum lugar desse mundo?
Conservar-te-ão na memória. Na lápide. Na poltrona vazia. Na moldura. Nas camisas penduradas no armário. Nos feitos. Numa marca. Numa receita. Num prédio. Numa conta de luz. Numa xícara preferida. Numa música. Seja amor ou ódio, lembrar-se-ão de ti e o manterão vivo por isso. Mesmo que você morra atrapalhando o sábado.