Tarde lenta

Hora não tenho.

Estou na varanda do sítio, deitado na rede, sozinho. Ouço as crianças brincarem. Devem estar no galinheiro. Ou no pomar.

Tempo solto...

No meu colo, 'Grande Sertão: Veredas'. Grande literatura...

Tudo é sem pressa agora, e o vento leve, muito leve. Vejo a claridade diminuindo. As cores mudam... Nuances... Tudo é muito lento.

Quero é isso; e poder criar: no tempo solto, sem afã, inventar histórias, mesmo que só para mim.

Formigas vêm e vão pelas paredes, pelo chão, afoitas.

A cachorrinha Lupita late cheia de coragem contra não sei o quê.

Por trás das árvores vejo nesgas de céu, nuvens escuras se ajuntando. Será que vai chover?

Estou cansado.

O grande quintal... Verde e marrom em vários tons. Bonito espaço. Lugar bom para ler; já li muito aqui.

Acabo de completar 40 anos. Muita coisa vivida, bem e mal...

(“O passado é ossos em redor de ninho de coruja”, disse Riobaldo em 'Grande Sertão').

Penso em Kafka, o escritor... Aos 40 anos ele já estava à beira da morte.

Pobre Kafka... Como sofreu...

Ele não era deste mundo. Era um gênio. Foi colhido cedo pela tuberculose. Se não fosse isso, acho que se matava. Não ia aguentar.

Eu sou deste mundo mesmo, deste chão, deste sítio – sou reles; pequeno; embora incomodado, desajustado: parafuso bambo, folgado, defeituoso de nascença.

Tentam me apertar, mas não conseguem. Escapulo. Escorrego. Às vezes dói.

Não me trocam. Talvez achem que sirvo para alguma coisa. Que seja. Faço o que posso.

Sou assim: parafuso frouxo, estorvado. Não firmo peças. Dou risco à solidez.

Onde me encaixo bem é no seio da família, no convívio dos que me aceitam como sou, e sozinho – lendo, escrevendo, estudando línguas, viajando... Aí dá encaixe perfeito. E eu gosto.

Mas isso é quando posso. No livre. No normal, não.

Enquadrado rijo, sou incômodo. Levo pancada, não conserto.

Mas tenho lá minha serventia, acho.

Nada pode ser tão perfeito. Não deve. Tortos e desajustados também fazem parte, ajudam; escorregam para fora das margens e voltam; trazem outras visões – inquietações.

Tarde lenta. Sol vermelho poente. Venta. Cigarras cantam. As crianças estão lá em cima agora. Ouço-as brincar, despreocupadas.

Abro 'Grande Sertão'...

Fui.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 07/10/2015
Código do texto: T5407215
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