Cruzeiros da Agonia
Folha de São Paulo, 05/10/2015 08h30 –
Mercado prevê mais inflação no fim do ano. Previsão dos analistas para o IPCA deste ano subiu de 9,46% para 9,53%.
É, a coisa tá feia. Mas já esteve muito pior. Quem tem menos de trinta anos não se lembra de como as coisas eram.
O sol nem se pronunciara ainda no horizonte e Aroldo já estava lá, na enorme fila que se formava à entrada do mercado do bairro. Ele ouvira no noticiário que aquele dia seria o ápice da inflação de preços, e quem quisesse garantir preço menor que fosse logo cedo às compras. Por isso ele madrugara. O problema é que todos tiveram a mesma ideia, e a fila se estendia até quase o fim do quarteirão, faltando ainda duas horas para abrir o estabelecimento.
Eram tempos de inflação. Pior, eram tempos de hiperinflação, que avançava num crescente sem fim. Os preços das mercadorias, que dobravam mensalmente, passaram a ser reajustado semanalmente, depois, diariamente. O tumulto era geral, as pessoas saiam de casa na alta madrugada para fazer compras nas padarias, mercados, lojas, etc., porque no decorrer do dia os preços subiam vertiginosamente.
Aquele dia seria pior: a inflação fugira do controle totalmente, e os preços seriam reajustados a cada hora, a cada minuto. Era o caos, o desespero coletivo.
Assim que abre o mercado o povo irrompe porta adentro atropeladamente, cada um querendo ser mais rápido que o outro. Em meio a balburdia, Aroldo nota na parede lateral do estabelecimento um grande painel eletrônico, onde se lia os preços aumentando ininterruptamente: Açúcar, 5k, Cr$ 1.350, 33...34...35...36...; Arroz, 5k, 1.452, 19...20...21...22...; Óleo, lata Cr$ 890,48...49...50...51...
E assim seguia a lista. Uma loucura, aquilo, paranoia total. Os clientes disputavam espaço pelos corredores para fazerem a compra o mais rápido possível. Empurravam-se, xingavam-se, maldiziam A Deus e o mundo. Aterrorizados, não tiravam os olhos do inflaçõmetro. Os preços não paravam de subir, os números pareciam disparar cada vez mais rápido.
A fila do caixa era outra batalha. Não respeitavam idosos, grávidas; cada minuto na fila representava alguns cruzeiros a mais na hora de pagar a conta. Poucas pessoas pagavam com dinheiro; seria necessária uma mochila para carregar a quantia necessária para uma simples compra no mercado. Pagavam com cheque, e sempre com uma porcentagem a mais para cobrir o tempo do comerciante descontá-lo no banco.
São e salvo, com apenas algumas escoriações, Aroldo finalmente chega ao caixa. Sua conta ficou em Cr$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil cruzeiros). Resmungando palavrões contra todos os políticos, apanha o cheque. No momento de preenchê-lo, olha novamente para o painel da caixa registradora: a conta já está em Cr$ 1.600.000,00.
- Ei, espere aí! Pare essa coisa, minha conta não deu isso!
- Certo, mas o Senhor demorou no cheque e o preço subiu. Sabe como é, né, com essa inflação... - Respondeu a moça do caixa com olhar cruel.
- Também já é exagero! Onde já se viu o... – Olha novamente para a máquina: o valor já foi para um milhão e setecentos. – O Quê!? Vocês estão ficando loucos! Isso é uma falta de respeito, um roubo. Quero falar com o gerente!
Nesta altura dos acontecimentos o gerente já se aproximava, atraído pelos berros do freguês e pelo tumulto que se formava entre os demais, na fila, impacientes por verem o caixa travado e o preço subindo, subindo.
- Está havendo algum problema, Senhor? – O gerente indaga com frieza profissional.
- É claro que está! Fiz uma compra de um milhão e quinhentos, e no tempo de fazer o cheque foi para um e setec.... Que é isso!? Um milhão e oitocentos! Vocês estão todos malucos! – Grita desesperado, vendo o preço subir novamente na máquina registradora.
- Ouça, companheiro! Acho melhor o Senhor pagar logo essa conta ou o valor irá dobrar. Para facilitar eu deixo por um e novecentos. Tá bom assim?
Aroldo nota que sua dívida já é de dois milhões. Faz logo o cheque e sai praguejando. O gerente balança a cabeça, com um leve sorriso.
Lá se vai um inconformado.