Crianças
Crianças
Veridiana passa as tardes olhando o jardim, quase sempre ela fica no terraço, já a surpeendi na cadeira do guarda, na portaria, quando me abriu um sorriso de estampa, desses largos e claros. Flora perambula e de tarde assiste um pouco de TV. Glória algumas vezes, mais do que as pessoas gostariam de admitir, em pleno almoço jogava o prato de comida no chão, em sinal de desagrado. Alegava que o cardápio era medonho e chegou a ficar de castigo algumas vezes. Hélio passou o ano de 2014 inteiro usando um esdrúxulo chapéu verde-amarelo, em virtude da Copa do Mundo. Baton se fantasia toda e fala sozinha a maior parte do tempo. Conceição lamuria, não raro de forma estridente, para desconforto de seus pares. Cecília tem períodos de humor elevado, noutros turnos ranha, sabe de tudo e quando passeia elogia com entusiasmo as mesmas folhinhas verdes que o jardineiro chama de amendoim. A cada 72 horas Rosa G. chora e diz que quer morrer. Depois passa e dorme. Milu come 3 bisnaguinhas de lanche, não vê a hora de chegar o seu aniversário e comenta que com esse calor queria passar o dia na praia. Maria ama sanduíche do Burguer King, qualquer um, e não perde um baile com a dupla de pai e filho voz e violão cantando velhos sucessos da MPB, denominada "Achados e Perdidos". Inocência é agradavelmente faladeira. Nazaré gosta de mangas. Pedro, artista nato, com jornais velhos e um pincel cria formas de bichos e plantas. Emily deu para ficar gritando. Grita de manhã e grita de tarde. Ninguém a demove desse rito.
Veridiana completou 100 anos em junho último. Semana passada levou um tombo, ela sempre leva, passa um dia ou dois de molho, daí retorna ao terraço e ao sorriso de estampa. Sorrimos um para o outro. Flora passou dos 80, parece sempre muito bem informada sobre os principais fatos nacionais e internacionais. Glória desencarnou dia primeiro de maio. Saiu de ambulância xingando tudo e todos, como de costume, ficou dois dias no hospital, voltou parva, muda, comentava-se que nem parecia ela, deu dois suspiros e bateu as botas. Estava com 93 anos. Hélio mentia a idade, parou com o futebol profissional em 1954, era um grande papo, queria casar com todas as cuidadoras e partiu para o Nosso Lar na virada de 2014 para 2015. Deixou saudades. Baton continua falando sozinha e se maquiando além da conta. Nunca soube a sua idade. Não é debutante. Conceição, 95 anos, passa o dia no quarto, arruma gavetas, deita, levanta e de repente começa a lamuriar. O filho a visita todos os dias. Cecília perdeu uma das pernas, coisa de uma década, ralhava muito com o Hélio por causa do cigarro, ficou orfã antes da adolescência, correu do sul para Sampa quando Juscelino era candidato, trabalhou em casa de família, não tem parentes embora amizades sinceras continuem firmes na visita aos domingos. Está com 88 anos. Rosa G. tem 93 e é uma chata de galocha. Milu completa 80 em janeiro e de uns meses para cá faz cada relato impressionante de sua infância, ontem contou que quando contraiu sarampo aos 6 anos, sua avó paterna colocou cortinas vermelhas no quarto, para o sarampo estourar inteiro. Maria esconde a idade, gosta de fazer bijuterias e cantar músicas românticas. Inocência, 92, quando não está falando, fica com a orelha grudada num radinho de pilha. Nazaré, 87, não esquentou lugar, uma família amorosa a cercava de mimos, o primogênito achou melhor transferi-la para outra localidade. Pedro, 82, palmeirense roxo, semanalmente vai ao Largo 13 e traz balas de mel para Maria. Emily completou 107 anos. Se desloca com um andador e grita, parece que em sinal de protesto pela mudança de quarto.
Não sei se me alegra, ou se me inquieta, a possibilidade de voltar a ser criança.
(Imagem: Diane Arbus)
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Veridiana passa as tardes olhando o jardim, quase sempre ela fica no terraço, já a surpeendi na cadeira do guarda, na portaria, quando me abriu um sorriso de estampa, desses largos e claros. Flora perambula e de tarde assiste um pouco de TV. Glória algumas vezes, mais do que as pessoas gostariam de admitir, em pleno almoço jogava o prato de comida no chão, em sinal de desagrado. Alegava que o cardápio era medonho e chegou a ficar de castigo algumas vezes. Hélio passou o ano de 2014 inteiro usando um esdrúxulo chapéu verde-amarelo, em virtude da Copa do Mundo. Baton se fantasia toda e fala sozinha a maior parte do tempo. Conceição lamuria, não raro de forma estridente, para desconforto de seus pares. Cecília tem períodos de humor elevado, noutros turnos ranha, sabe de tudo e quando passeia elogia com entusiasmo as mesmas folhinhas verdes que o jardineiro chama de amendoim. A cada 72 horas Rosa G. chora e diz que quer morrer. Depois passa e dorme. Milu come 3 bisnaguinhas de lanche, não vê a hora de chegar o seu aniversário e comenta que com esse calor queria passar o dia na praia. Maria ama sanduíche do Burguer King, qualquer um, e não perde um baile com a dupla de pai e filho voz e violão cantando velhos sucessos da MPB, denominada "Achados e Perdidos". Inocência é agradavelmente faladeira. Nazaré gosta de mangas. Pedro, artista nato, com jornais velhos e um pincel cria formas de bichos e plantas. Emily deu para ficar gritando. Grita de manhã e grita de tarde. Ninguém a demove desse rito.
Veridiana completou 100 anos em junho último. Semana passada levou um tombo, ela sempre leva, passa um dia ou dois de molho, daí retorna ao terraço e ao sorriso de estampa. Sorrimos um para o outro. Flora passou dos 80, parece sempre muito bem informada sobre os principais fatos nacionais e internacionais. Glória desencarnou dia primeiro de maio. Saiu de ambulância xingando tudo e todos, como de costume, ficou dois dias no hospital, voltou parva, muda, comentava-se que nem parecia ela, deu dois suspiros e bateu as botas. Estava com 93 anos. Hélio mentia a idade, parou com o futebol profissional em 1954, era um grande papo, queria casar com todas as cuidadoras e partiu para o Nosso Lar na virada de 2014 para 2015. Deixou saudades. Baton continua falando sozinha e se maquiando além da conta. Nunca soube a sua idade. Não é debutante. Conceição, 95 anos, passa o dia no quarto, arruma gavetas, deita, levanta e de repente começa a lamuriar. O filho a visita todos os dias. Cecília perdeu uma das pernas, coisa de uma década, ralhava muito com o Hélio por causa do cigarro, ficou orfã antes da adolescência, correu do sul para Sampa quando Juscelino era candidato, trabalhou em casa de família, não tem parentes embora amizades sinceras continuem firmes na visita aos domingos. Está com 88 anos. Rosa G. tem 93 e é uma chata de galocha. Milu completa 80 em janeiro e de uns meses para cá faz cada relato impressionante de sua infância, ontem contou que quando contraiu sarampo aos 6 anos, sua avó paterna colocou cortinas vermelhas no quarto, para o sarampo estourar inteiro. Maria esconde a idade, gosta de fazer bijuterias e cantar músicas românticas. Inocência, 92, quando não está falando, fica com a orelha grudada num radinho de pilha. Nazaré, 87, não esquentou lugar, uma família amorosa a cercava de mimos, o primogênito achou melhor transferi-la para outra localidade. Pedro, 82, palmeirense roxo, semanalmente vai ao Largo 13 e traz balas de mel para Maria. Emily completou 107 anos. Se desloca com um andador e grita, parece que em sinal de protesto pela mudança de quarto.
Não sei se me alegra, ou se me inquieta, a possibilidade de voltar a ser criança.
(Imagem: Diane Arbus)