A revisora

– Há quanto tempo você é revisora?

– Há cinco anos, mas só reviso textos de circulação restrita, coisa pouca, nada para jornais, revistas e editoras. É só um bico.

– Você sabe que existe um projeto na Câmara para tornar essa atividade ilegal no país?

– Sei. Por isso estou largando. Na empresa onde eu trabalho não corrijo mais nada, nem vírgula. Fui contratada como revisora, mas hoje estou no departamento de gráficos de colunas, onde e-mails com textos são proibidos. Para a comunicação interna os diretores exigem linguagem falada curta, direta, permitindo mensagens de texto só para casos muito urgentes, e mesmo assim tudo curtinho, para manter a equipe bem focada nas metas. Nada de textos longos, que façam pensar. Mensagens com mais de duas linhas são terminantemente proibidas.

– Por que você riu?

– Eu não ri. Foi impressão sua.

– Você acha que seus diretores estão errados?

– De jeito nenhum. Hoje em dia ninguém precisa ler livros, textos com aprofundamento (que enchem a gente de dúvidas), nem escrever bem. Para que saber concordância e regência? Para que serve crase? Precisamos dominar bem é o Excel e o Corel, fazer gráficos e tabelas, planilhas coloridas, relatórios numéricos, navegar na internet com eficiência e objetividade, vapt vupt! Tempo é dinheiro. Meus diretores estão certíssimos.

– Você tem livros em casa?

– Eu tinha, agora não tenho mais. Doei tudo para a biblioteca municipal, mas fiquei sabendo que o prefeito mandou fechá-la. Queimaram todos os livros. Em casa só tenho apostilas e manuais da empresa, praticamente só esquemas, gráficos e tabelas, tudo muito objetivo. E digital.

– Já leu Kafka?

– Quem?

– Deixa para lá. Marx?

– De jeito nenhum!

– Guimarães Rosa?

– Já ouvi falar, mas nunca li. Dizem que é horrível. Muito difícil.

– Quem diz?

– Dizem. Não sei. Ouvi dizer.

– Você conhece algum professor militante, apaixonado por literatura, que acha que os jovens precisam ler mais, saber mais história e filosofia, refletir mais, essas bobagens todas?

– Não. Eu conheci um professor de literatura uma vez, saímos juntos, mas não deu certo. Ele insistia demais para eu ler Dostoievski... Fiquei sabendo que ele se matou.

– Ele tinha biblioteca em casa?

– Sim, mas a família mandou queimar.

– Você escreve quando não está trabalhando?

– Tipo o quê?

– Poemas, crônicas, contos, essas bobagens.

– Às vezes eu escrevo, mas só para mim, não mostro para ninguém.

– Ok. Por hoje é só.

– Posso ir?

– Sim. Mas estamos de olho em você.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 30/09/2015
Código do texto: T5399392
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