Erev&Por amor

Erev&Por amor






E assim vamos, buscando um santuário a cada novo dia. Domingo de manhã fazemos a renião dos salvadores do mundo às 9:30. Esclarecendo aos amigos desta página, salvamos o mundo de nós mesmos. Contei para os conhecidos em versão resumida o diagnóstico médico: estou lascado, é só uma questão cronológica. Foi na hora do café que um deles me disse: vou rezar por você. Ganhei um amigo às 10:42. Subo a ladeira ruminando sobre "nem o fogo do coração, nem o poder do espírito, precisam se tornar menores, porque a juventude e a força do corpo são diminuídas. Um dia, saberemos e sentiremos isto, e honraremos o envelhecimento do corpo em sua beleza e expressividade que proporcionou um abrigo para o espírito por tanto tempo". Noutras palavras, o biomecanismo evolui para uma maior coerência na expressão sutil.

Ok, rumino no fim da ladeira. Sabe o que eu ouvi semana passada? Com essa estapafúrdia profusão de super heróis em cinema e quadrinhos, o que denota um largo interesse pelo assunto, por que ninguém tenta ser um? Resposta: porque há algo a perder.

Por amor já me calei e fiquei tanto tempo calado que se acostumaram. Depois, quando a gente abre a boca, é um Deus nos acuda. Amo alguns períodos do dia. Gosto de descobrir palavras novas, de ver pessoas íntegras atuando em debates inteligentes, de passarinho saltando do muro pra árvore, acredito na estratégia da paciência, em "dormir sobre um assunto" caso não seja urgentemente necessário decidir no já emergencial, depois de uma boa noite de sono a solução surge fresquinha, em certas ocasiões são necessárias duas ou mais noites para o amanhecer definitivo. Amo desfrutar desses períodos de tempo sem pensar que tenho algum controle sobre eles, conservando na outra mão o que já dizia a avó da minha avó: o irremediável, remediado está. Por amor fiquei olhando ela dormir, até me aproximar, tocar seu ombro, fazer um cafuné e dizer: está na hora.

Gosto de lençóis limpinhos, de caminhos sombreados por copas verdes que se insinuam, de descobrir um jardim escondido, digo, um pequeno jardim, que ainda não havia reparado, depois de subir a ladeira, desço uma reta branda, enorme, tem um cachorro velho numa das casas, com um latido rouco, por amor fiz dia após a dia a mesma tarefa, até que ficasse perfeita, não ficou, um dia descobri que estava muito velho para tal sonho, precisaria de outra vida, tive que amar a mim mesmo para sanar essa ferida.

Por amor esqueci, oscilei, avancei, voltei atrás, olhei para os lados, cocei os olhos, apertei as mãos, se usasse uma camiseta com os dizeres "barata tonta" no peito estaria tudo certo e mais um pouco.

No início deste verão, cujo calor, quando não estonteava, assustava, ficava das duas às quatro papeando com a minha mãe, falávamos do passado, dos parentes que estão do outro lado, uma tarde em particular ela olha para o nada e num segundo diz: foi-se a vida. Saí pesaroso, direto para o mercado buscando bananas e outros víveres, uma sacolinha em cada mão tem início o passeio de volta, amo esse trajeto, dois guardas estão na mesma esquina dir-se-ia há décadas papeando, trocamos acenos, vejo o rapaz de cavanhaque que passeia com um labrador preto feito piche e gordo como um javali, o bicho deita no asfalto e parece impossível demovê-lo, o rapaz me olha como que vexado pela atitude do cão empacado, lá na frente tenho a opção de esticar o trajeto e quando o faço, em virtude do grande terreno vazio e do cenário vegetal esmeralda, telhados e gramados, imediatamente torno à pré adolescência, quando não havia medo ou saudade, só longas caminhadas sem cansaço.

"Foi-se a vida", disse minha mãe nesse dia em particular e vou pensando quantas pessoas não passam pelas nossas vidas, algumas por longos anos, outras um mero sopro, inumeráveis as interações que temos com elas.

Erev Yom Kippur é uma data que ocorre um dia antes do célebre Yom Kippur da tradição judaica. No Yom Kippur pede-se perdão de seus pecados contra Deus. Mas na véspera, no Erev, pede-se perdão de seus pecados contra as pessoas. Desse modo, pela lógica dessa religião, não se pode pedir perdão a Deus sem antes pedir perdão para as pessoas. Assim como o agradecimento, isso não deixa de ser um gesto de amor.



(Imagem: Estudo em laranja e azul,  A. C. Chaves, 2001)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 26/09/2015
Reeditado em 11/07/2020
Código do texto: T5395669
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