Pequenas histórias 107.
Eclodiam pequenos
Eclodiam pequenos atos cuja pulsação carregava certo dinamismo aos gestos sonolentos da manhã cinzenta ameaçando chuva. Isso lhe dava uma transparência que o forçava a entender os movimentos da manhã, não os seus movimentos, mas os movimentos que compunham a manhã; os movimentos dos carros, das pessoas, dos vendedores, dos jornaleiros, até os movimentos às vezes chocantes dos pedintes e dos camelôs que, como sempre, atulham a calçada sujando e atrapalhando o fluxo dos que tem algo para fazer. Vozes, gritos, conversas, freadas, filas, vendedores de guarda-chuva - precisava comprar um, o antigo quebrara - risadas, vozes que passavam por ele apressadas, sinfonia de ações vibrando em vários acordes compondo uma única melodia: a vida.
No fluxo das ideias estagnou-se no meio da avenida enquanto os carros passavam por ele. Jubilou-se num contentamento em que precisou abafar o grito: eu também faço parte dessa vida, quis gritar, clamar pela avenida toda, pelos bares, bancos, edifícios, praças, museus, em cada esquina, mas se conteve se reprimiu, ninguém o entenderia, achariam que ele estava louco, diriam: mais um louco a atrapalhar nossa vida. Vivia dizendo que não liga para o que pensam ou digam dele, e então porque não faz o que deseja? Sim, poderia fazer, e se ele fizer estaria quebrando as regras da sociedade, mas a vida para ser vivida intensa e completa não é um quebrar de regras? E esses que estão amargando o topo da fama, sendo disputados pela mídia, uns merecidamente outros nem tanto, e, numa faixa menor, alguns quebrando pateticamente as regras do seu insignificante mundinho, o que fizeram? Quebraram regras, seja ela qual for e como foi. Quebraram, e porque ele também não pode quebrar pelo menos que fosse uma regra. Gritar o seu amor por tudo isso que o rodeia nessa manhã cinzenta ameaçando chuva?
Nisso viu dois rapazes, quase em frente ao Bradesco ao lado da banca de jornal, tocando violino. Estariam eles quebrando regras? Sim, acha que sim, só por estarem ali, cada um com seu violino, pouco se importando se acham que eles tocam bem ou mal, já é um fato. Ninguém prestava atenção nos dois. Só ele. Ficou por uns momentos observando-os com uma pontada de inveja. Teria coragem de imprimir seus poemas em pequenos papéis e distribuir aos transeuntes por onde passasse? Não, não teria e sabia que nunca iria fazer isso, pois essa ideia já rolava na sua cabeça há muito tempo. Num imperceptível mover de ombros, agradeceu aqueles dois por esse momento de reflexão e, mentalmente desejou que alcançassem o que desejavam. Continuou sua caminhada se embrenhando na mata de seres humanos invisíveis com suas vidas corriqueiras de citadinos contentes com o a vida.
pastorelli