NOTA DE FALECIMENTO

Faleceu ontem, assassinado cruelmente, o meu amigo Bicho de pé.

Ele chegou a minha vida, no meu corpo, se instalou caladinho no lado do meu pé e ali fez sua morada.

Eu sentia aquela sensação gostosa de sua presença que é uma coceirinha dolorosa ou uma dorzinha coçando, sei lá. Já havia esquecido como era ter um inquilino, pois lá se vão anos e anos que tive o último.

Coloquei meu pé no colo de minha mãe e pedi a ela que olhasse o que tinha ali que estava me incomodando. Ela apertou bem os olhinhos, passou a unha, apertou e perguntou?

_É aqui? Senti uma fisgada e gritei:

_É ai sim, mãe!

Ela me olhou e vi em seus olhos a crueldade assassina, friamente estampada ali. Colocou meu pé na cadeira e somente me disse:

_Pera ai...

Meu Deus, eu não acreditava no que via. Minha mãe que tem dores por todo corpo provocada pela artrose, que se levanta com tanta dificuldade quando lhe pedimos para coar um cafezinho pra gente, se levantou com uma rapidez! (começo a questionar essa artrose) Foi lá dentro e voltou com suas armas infalíveis: uma agulha( ah, meu Deus, a agulha ainda existe...), o algodão e o litro de álcool.

_Vou tirar esse bicho daí agora!

Pegou meu pé, colocou novamente no colo e começou a trabalhar, como sempre fez quando éramos crianças. Feliz, satisfeita, vitoriosa, diante daquele inimigo que ela sempre soube que venceria!Iniciou o procedimento, levantando a pelinha, futucando, futucando e resmungando:

_Bicho de pé a gente tem de tirar inteiro... Bicho de pé a gente não pode deixar a batata rebentar senão zanga. Eu já vi um bicho de pé zangado numa menina e o trem fica feio pra dana!

Com os meus uis, ais, pêra ai, ela não se comovia e continua concentrada em sua batalha. Futicava, puxava as pelinhas com a unha, futucava mais com a agulha e o trem doía, doía mesmo!

De repente ela levanta a agulha com o brilho da vitória nos olhos. Na ponta da agulha estava a batatinha, a morada do meu pobre inquilino. Pegou o algodão, virou nele o álcool e colocou no buraquinho onde morava meu amigo. Jogou a batatinha no fogo do fogão de lenha, pra não vingar nem um ovinho sequer. Anos se passaram e minha mãe continua a mesma: implacável diante de um bicho de pé.

Agora estou aqui, sem meu amigo, mas ainda sentindo vestígios do tempo em que esteve comigo, uma leve coceirinha e o buraquinho.

Morreu meu amigo que caminhou comigo e me levou de volta à minha infância.

LUTO!

Izis Lima
Enviado por Izis Lima em 25/09/2015
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