O dia que o pai ia me dar
 
Leitores, pensem em uma criança singular. Criança é bicho egoísta. Agora aumentem ao enésimo grau. Eu pequena.

Como já comentei anteriormente, a mão dizia que eu não era bicho que se carregue em meio de carga. Eu não existia. Enquanto a Vanda queria ser a Christiane Torloni eu queria ser a Natália do Vale. Pelejei tanto, chorei, esperneei, até que o pai cansou de perder no bicho (era o meu choro que estava dando azar) e comprou para mim uns óculos escuros. Então eu me sentava à janela fazendo a cara da Andréia (acho que era esse o nome da personagem) enquanto a rádio da minha cabeça tocava "perigooosaaa" kkk

Não sei se era instinto de sobrevivência mas eu queria tudo para mim. Achava lógico e justo eu ter tudo. Aliás ainda acho. E era uma cobra por ovo. Adorava.
Um dia a mãe foi buscar água no chafariz e deixou postos os pratos de todo mundo. Baião com ovo. O que que eu fiz: comi a banda de ovo de cada um. Deixei só o do pai na bacia grande que eu não era nem doida.
Quando a mãe chegou com a lata d'água em vez de me dar uma pisa achou foi bonitinho. Tem lá suas recompensas ser uma criança nervosa.

Apois, foi o pai mesmo que veio um dia com uma história que ia me dar. Isso mesmo. Me dar para uma velha que morava em um casarão. Aquilo muito me interessou. Quis inteirar-me dos fatos, principalmente se a velha tinha televisão. Tinha sim, colorida. Gostei. E comecei a me aprontar para mudar de casa. Ia ficar rica, morar em um casarão com uma velha que decerto haveria de ser muito interessante e, principalmente, ia me livrar da Vanda.

Sonhei dias e dias com isso. E nada do pai me levar para a minha nova morada. Até que uma noite, enquanto a Vanda dançava o piripiripiri no centro da sala para o pai achar bonito eu o questionei acerca da minha mudança, afinal, a velha queria ou não queria me criar? Eu iria ou não morar com ela?
Oh, rapaz. Pra que. O pai deu uma gaitada e disse que o tempo todo estivera brincando, que nunca na galáxia ia dar um filho seu. Eu fiquei muito indignada. E a TV em cores? E o casarão antigo?
Nova gaitada do pai. Para inventar a história ele tinha se inspirado em uma velha solteirona que morava em um quixó à beira-rio e só tinha de seu um gato com mal do péla.

Fiquei uns dias amofinada. Depois pensei "É, fazer o que."
Mas hoje me veio a impressão de que foi naquele dia que minha alma se mudou para um casarão imaginário em ruínas onde mora uma velha escritora dona de um gato estranho, uma velha que fuma muito e anda apoiada em uma bengala.

Serei eu essa velha, em um futuro próximo?
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 24/09/2015
Reeditado em 24/09/2015
Código do texto: T5393170
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