Do chocolate a arvore
Do chocolate a arvore
(Continuação do texto Começando um chocolate)
Olhe novamente para a vendedora de docinhos, olhe bem e veja sua situação. Em pé, próxima a entrada de um edifício publico que é bancado com dinheiro público, em que alunos, professores, pesquisadores e outros desenvolvem, trocam e constroem conhecimentos, concretos ou não.
Ela está a margem da possibilidade, vendendo doces feitos caseiramente, para se sustentar, enquanto vê aquela presença esmagadora da possibilidade impossível que cresce acima de sua cabeça. Tanto figurativamente quando literalmente, já que prédios são elementos para determinados tipos de pessoas, o prédio é um ambiente que já indica separação social. Dê uma olhada em favelas. São barracos com no máximo três andares. Existem aqueles que moram em prédios nas favelas? Sim, existem, mas são os mais bem sucedidos das favelas. Não existem prédios para uma igualdade, eles são sempre excludentes.
Ligeiramente mostrei que nossa arquitetura faz parte intrínseca do preconceito das classes. E isso ninguém repara a principio, uma tradição herdada inconscientemente que nos passa como a mais normal e corriqueira das coisas mundanas. Uma peça clara de separação espacial entre tipos e classes de pessoas.
Veja mais uma vez a cena, a moça para e olha para a cesta, pede algum doce e faz pagamento. E perguntaria o mais curioso, mas como essa mulher veio querer vender docinhos logo aqui? Pergunta essa que se estende para algumas similares; Porque ele veio assaltar logo aqui?; Porque esses camelos vêm amontoar logo aqui?; Porque esses pivetinhos vem fazer malabarismos logo aqui?
Fico espantado e ao mesmo tempo estupefato com a falta de percepção primária e básica da maioria das pessoas ao se questionarem (geralmente logo após o mal ter ocorrido com elas). Não me fica mais que claro nosso arraigado modo de viver com o modo: nós aqui eles lá.
Já que eles lá, podem se matar, morrer de fome, passar mal, o diabo que for, nós não estamos vendo. E daí utilizamos essa capacidade de abstração tão querida algumas horas que é o ignorar o que não se vê. Mas mesmo assim temos essa sensação tácita da continuidade física das coisas. Mesmo não vendo a praia de Icaraí tenho a certeza que ela vai estar lá quando eu me dirigir a ela. Assim como tenho essa certeza, também a tenho dentro de mim que assim que eu passar pela Joaquim Távora eu vou ver o morro, cheio de barracos, com pessoas miseráveis. Mas prefiro abstrair. Preferimos acreditar que já é parte do mito urbano, esse cenário, cenário...
Vivemos talvez essa eterna representação dos papéis que nos são impostos, deixando para outrem uma possível capacidade de mudança. Essa que nos incomoda tanto. Vemos nossa árvore de opções. Quanto mais a linha do tempo corre e mais longe ficam os vértices de mudança mais acomodados com a situação ficamos. Essa árvore pode ser podada e moldada a qualquer hora, mas ficamos com a ligeira preguiça de pegar as ferramentas e no fundo ao olhar a senhorita vendendo docinhos preferimos comentar sobre o tempo, já que esse não depende de nós.