A Casa Amarela

Existia inocência, antes da casa amarela.

Havia pureza no olhar ao cruzar aquela porta.

O mundo infantil é mesmo feito de pequenas grandes alegrias, como transparecia na face da garota a euforia pela pintura nova, a residência funcionava como uma pensão. Era um imóvel antigo, dois andares, oito quartos, três banheiros e um belo jardim, lembrava casas tradicionais de família italiana, da qual descendiam. Por tratar-se de herança familiar, seu pai não hesitou em aceitar que o irmão mais novo, afastado há tempos e passando por dificuldades financeiras, ocupasse um dos quartos vagos. Clara estava feliz, finalmente conheceria o tio, o conhecia, de ouvir, aos sete, não compreendia com a clareza de um adulto os motivos que o levaram a passar dez anos trancado numa prisão, era inteligente, compreenderia, se a tivessem explicado.

A pintura, nada tinha a ver com a chegada do parente, se fazia necessária, já se iam alguns anos desde a última demão de tinta, a aparência de lar bem cuidado mantinha os hóspedes satisfeitos. Uma cor indefinida, que um dia tinha sido verde intenso, era aos poucos tomada pelo amarelo vibrante, escolhido pela menina. Com um pequeno pincel dava sua contribuição no que achava ser uma espécie de comitê de boas vindas.

Domingo, 11 da manhã. O dia amanheceu sem festa, sem expectativa, nada de roupa nova ou qualquer outra coisa que denotasse alegria. Lembrou-se do pai ao telefone, da ênfase ao repetir que o irmão chegaria ao domingo, antes do almoço. Não parecia especial, sua mãe preparava a tradicional macarronada, o cheiro, era de fato muito bom, o mesmo aroma de todos os outros domingos desde que se entendia por gente. Desistiu de perguntar o motivo da demora ao ser ignorada pela terceira vez consecutiva, mas percebeu o atraso.

Sentados à mesa, batidas anunciaram a chegada, um misto de alegria e curiosidade leva a garota em disparada até a porta, viu um homem muito parecido com o seu pai, mais magro e mais jovem. Aproximaram-se o irmão, sério e a cunhada, tensa. Tensão era a palavra que definia o ambiente, mas Clara não via dessa forma, não tinha maturidade para tanto, pensava ser emoção.

Não se ouviram risos, não teve abraços com tapinhas nas costas, apenas olhares desconfiados, meias palavras, poucas palavras, uma rápida explicação pela demora e a indicação de onde guardar os seus pertences, uma mochila, onde deveria, na cabeça da criança, estar o seu presente.

Um anúncio formal apresentou o novo morador, nada muito detalhado, os hóspedes não demonstraram grande interesse, em poucos minutos estava sentado, falando sobre o tempo e coisas de adulto, alternando com momentos onde a conversa descambava para uma total falta de assunto, os irmãos, totalmente distantes, mesmo lado a lado. Os dias que seguiram foram regados a doses cavalares de silêncio, incomum numa casa acostumada a risos altos e música animada. Seu tio era calado, frio demais para o cara legal que traria presentes na mochila, raramente se dirigia à sobrinha, mas a observava, como se quisesse.

Em pouco tempo já não era mais um estranho, mas ainda era, uma vez que decifrá-lo era impossível. Arrumou um trabalho de vigilante, passava as noites fora e os dias a dormir, tornara-se uma espécie de móvel, como o sofá da sala, acostumaram-se com ele e tudo parecia caminhar para certa normalidade.

Numa tarde, a promessa de uma surpresa - ela ainda achava que podia ser o presente. Um convite. Um passo adiante e uma porta fechada. Jamais seria a mesma. Ao sair, não havia mais pureza em seu corpo, em seu olhar, o assombro, seu companheiro inseparável desde então. Entendeu o teor da conversa que flagrou pela metade, seu pai ordenava que o irmão não se aproximasse dela, ou não responderia por si. Não achou que devesse temer a quem deveria confiar. Não imaginou que vivia com o inimigo.

Nunca se entendeu o motivo do sumiço repentino do recém-chegado, nem uma carta foi deixada.

Ficaram marcas na alma. Pra sempre atormentada, desaprendeu a sorrir. Seu olhar denunciava o que a voz não permitia. Um olhar agora vago, perdido, procurando quem sabe, a ingenuidade roubada. E dividir sozinha esse peso seria morte em vida.

Débora Brun
Enviado por Débora Brun em 23/09/2015
Reeditado em 03/07/2016
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