EXPRESSO 366
EXPRESSO 366
BETO MACHADO
Era a segunda vez que Nélio observava a presença daquela beldade na fila do expresso 366, aquela semana, no mesmo horário. E a coincidência não parava... Na vez anterior, desceram no mesmo ponto de ônibus: Na passarela da Av. Brasil, Posto Mendanha, Carobinha. Ambos moram ali. Ambos trabalham no centro da cidade do Rio de Janeiro... Até aquele novo encontro casual eles eram meros desconhecidos um do outro.
Nélio, mulato bem apanhado, com pinta de mestre-sala de escola de samba não moveu uma palha sequer para bloquear os impulsos do seu instinto galanteador. Envolveu a moça na sua teia verbalizada, de tal forma que, minutos depois, já conhecia uma gama de dados pessoais de Estela, sua vizinha de bairro carente e colega de viajem.
A animação da conversa na fila adentrou no ônibus, sem que eles percebessem. Parecia até que Cupido circulava, disfarçadamente, pelos ares das ruas do Lavradio, do Senado e adjacências. Enquanto a irritação tomava conta dos outros passageiros, pela demora da chegada e saída do ônibus a tranqüilidade de Nélio e de Estela era um ponto fora da curva que representa e expressa o grau de satisfação dos passageiros (reféns) dos transportes públicos no Rio de Janeiro.
Nem a inclinação fora do normal, produzida pela alta velocidade do coletivo lotado, quando saía da Rua Pedro I para a Praça Tiradentes, causou transtorno ou interrompeu o diálogo “face to face” dos pombinhos já enamorados no primeiro papo. Os corações de ambos comemoram o engarrafamento da Av. Presidente Vargas e classificaram como muito bem vindas as obras da Av. Brasil... “Bendita seja a Olimpíada”, pensaram os dois. Nélio e Estela se entreolhavam a tão pouca distância entre os rostos que os passageiros, de pé, ao lado do assento deles, já imaginavam acontecer o inevitável: beijos na boca... Dito e feito... Não deu outra coisa.
O coletivo singrava a Brasil obedecendo a um sistema de “pare e siga”, cuja intermitência causava ansiedade e irritação a todos os cidadãos que não se encontravam na situação daquele casal tão desligado do mundo a seu redor.
Estela foi obrigada a ceder às circunstâncias e desmontou seu plano elaborado horas antes do seu expediente expirar-se. Sua intenção era memorizar e relacionar ruas, escolas, áreas de lazer e pontos importantes de convivência social no lugar onde mora. Esses itens fazem parte do enunciado do trabalho que ela deve entregar, na próxima semana, ao professor de sociologia do Curso de Direito, levado muito a sério e chegado ao meado do último período.
Moradora há pouco mais de um ano no Jardim N. S. das Graças, vinda lá da Abolição, onde compromisso do aluguel corroia grande parte do orçamento de sua família composta de três pessoas: seu pai, sua mãe e ela. A tranqüilidade de morar em casa própria, a despeito da longínqua distância do centro da cidade, mudou o emocional dos pais de Estela para muito melhor, a ponto de reduzirem pela metade a compra de remédios.
Nélio se colocou a disposição de Estela para ajudá-la na tarefa escolar. Como morador do bairro desde sua ocupação, em 1988, conhece toda a região, da Av. Brasil até o Largo do Guandu do Sena, incluindo o Conjunto Votorantim, o Jardim Mendanha, Campo Belo, Caminho do Ceará, Sete Riachos e Caminho do Sebo. Seu tio fora presidente da associação de moradores e até hoje é um ativista comunitário. Quando adolescente acompanhava-o nas suas caminhadas buscando resolver pendências da comunidade que surgia com inúmeros problemas, alguns já solucionados, outros ainda não.
O sonho de olhos abertos naquela viajem fascinante estava para despertar. Parecia que o motorista conspirava contra a continuidade do namoro de Nélio e Estela. Pé na tábua o tempo todo.
Acionada a cigarra de parada, os pombinhos levantaram e saíram, seguindo mais de quinze outros passageiros, o que deixou o coletivo praticamente vazio.
Precisamos contar essas histórias de pessoas de bem que moram em lugares, muitas vezes, considerados de risco social, denominados de favela, comunidade ou outros adjetivos pejorativos, que servem mais de carimbo do que de referência. A minha torcida é para que Nélio e Estela tenham formado seu ninho, cujos primeiros gravetos foram recolhidos dentro do EXPRESSO 366.