Trecho d'A Brincadeira

Assim, depois de tantos anos, voltava de novo a casa. De pé, na praça principal (que, criança, depois rapaz, depois jovem, atravessara mil vezes), não sentia qualquer emoção; pelo contrário, pensava que aquele espaço onde a torre do sino (parecida com um antigo cavaleiro sob o seu elmo) se vê acima dos telhados, lembrava a vasta parada de um quartel, e que o passado militar daquela cidade da Morávia, outrora muralha contra as incursões dos Magiares e dos Turcos, imprimira nela a marca de uma irrevogável fealdade [fealdade é referente a algo feio].

Durante anos, nada me atraíra à minha cidade natal. Dizia-me que ela se me tinha tornado indiferente, e isso parecia-me natural: ao fim de quinze anos vividos fora, só me restam alguns conhecidos, ou mesmo

os amigos (que prefiro, de resto, evitar); a minha mãe está enterrada num túmulo estrangeiro, que não visito. No entanto iludia-me: aquilo que eu chamava indiferença era na realidade rancor; escapavam-me as razões, pois tinham-me acontecido coisas boas ou coisas más nesta cidade como em todas as outras, em todo o caso esse rancor existia.

Introdução do livro "A Brincadeira", de 1967.

SOBRE O AUTOR

Milan Kundera nasceu em 1929 em Brno, na Checoslováquia. Operário, depois pianista de bar, acabou por se consagrar à literatura e ao cinema, tendo sido durante vários anos professor no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos de Praga. Após a invasão soviética de 1968, foi demitido das suas funções e todos os seus livros foram retirados do mercado. Havia já publicado A Brincadeira (1967) e O Livro do Amores Risíveis (1968), este último Prêmio da União de Escritores Checoslovacos. A partir dessa data, a sua obra deixa de poder ser publicada na Checoslováquia e as primeiras edições dos novos livros surgem já em

tradução francesa. É em França, aliás, que em 1975 fixa residência, sendo convidado para professor universitário. Quatro anos mais tarde, reagindo à publicação de O Livro do Riso e do Esquecimento, o governo checo retira-lhe a nacionalidade.

Boris Becker
Enviado por Boris Becker em 22/09/2015
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