O Cantor - Reminiscências (1)
Caminhou sempre comigo um sentimentalismo, talvez exagerado, tipo sentimentalismo de pele, que já naquele tempo me valia temerárias ações de um romantismo desenfreado, algumas vezes nomeado de piegas por gente de outra estirpe, que não consegue entender que há pessoas que nascem com uma sensibilidade tão dominante quanto essencial aos seus estranhos dias e meditativas noites. Por isso, me revejo cantor, embora tenha voz arrastada, nasalizada e seja tão desafinado quanto um gringo cantando samba. É verdade isso, pura verdade, e é bem possível que eu sorria e chore, ao lembrar um dos meus momentos de tolice saudosa, na verdade, herança heroica dos meus tempos de romântico impenitente.
Apesar da bruta revolta que rugia no meu peito pela pobreza absoluta em que vivi, até emigrar para o Rio de Janeiro, eu gostava muito de cantar. Parece que vem daí a minha paixão pela poesia, porque as músicas que eu gostava de cantar eram as músicas cuja letra e melodia me embeveciam o espírito, fazendo-me viajar, divagar, sonhar... É claro que, sendo um cantor da qualidade já descrita, cantava só no banheiro ou dentro de casa, para desespero dos ouvidos de mãe e irmãos.
Morava na outra rua uma família bem mais pobre que a nossa. Era Dona Bibi, uma mulher de uns 40 anos, alcoólica, com suas duas filhas: Maria José, a Zezé, bonitinha e de olhos cor de mel, a minha primeira namorada, e Valdinar, filha de criação, uma mulatinha esperta. Passavam mais fome e mais privações do que nós e, por isso, eu, sempre que possível, auxiliava-as com algum dinheirinho ou com alguma coisa que nos dias de vacas gordas sobrava na nossa despensa.
Zezé, que morreu precocemente aos 20 anos, era sonhadora, suspirosa, e adorava as músicas românticas cantadas nas emissoras de rádio pelos cantores famosos da época, tais como Carlos Galhardo, Francisco Alves, Nelson Gonçalves, Emilinha Borba, Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Maysa Matarazzo e outros. Dona Bibi e Valdinar também compartilhavam desse gosto, mas a pobreza da família não lhes permitia possuir um aparelho de rádio para ouvir essas músicas. Nós também não tínhamos nenhum, mas os nossos vizinhos tinham e, portanto, eu, de ouvido atento e memória privilegiada, decorava todas as canções que caíam no gosto do povão e me punha a cantá-las e a assobiá-las a torto e a direito.
E, às vezes, quando eu ia à sua casa, Zezé – apoiada por D. Bibi e Valdinar – me pedia que cantasse algumas dessas músicas para elas ouvirem. Se eu me fazia de rogado, alegando não ter talento para tal, elas protestavam veementemente: "Não, senhor, que isso, você canta bem, canta muito bem!" Ah, o que não faz um homem a quem aguarda uma plateia de seis românticos ouvidos femininos! Eu me inchava de orgulho e importância – e por que não dizer também, emoção, pois havia uma namorada minha nessa plateia – e soltava a voz de taquara rachada! Juro para vocês que elas gostavam. E ficavam bem felizes...
Quem já ouviu falar ou ouviu alguma canção, geralmente uma valsa, cantada por Carlos Galhardo, conhecido na nossa Era do Rádio como o Rei da Valsa, sabe que a sua voz embalou os sonhos românticos de muitos homens e mulheres por duas ou três gerações. O homem tinha uma voz e uma afinação realmente impressionantes. Pois esse grande menestrel estava na moda na MPB da época e uma valsa cantada por ele, Em Você, era a preferida no coração da Zezé que a ouvia – cantada por mim – com os olhos perdidos num porvir risonho que, infelizmente, nunca chegou para ela... Consigo me lembrar perfeitamente da contrita emoção que a dominava, extasiada com as imagens poéticas tão carregadas de comovente lirismo, contidas nos belos versos da canção. E só poderia ser por isso, porque, quanto ao intérprete, em nada contribuía para o deleite sonoro dos seus adolescentes ouvidos.
Compassivo e cúmplice daquele incondicional romantismo, sorrio da cômica cena: um cara desafinado cantando valsas para a namorada romântica e ingênua, mas sei que vou guardá-la para sempre dentro de mim, pois é história inamovível de um livro de histórias que a minha emoção lê nas noites de ninar do meu coração.