Meu pai era um homem simples.  Mineiro, criado na roça, gostava de contar histórias, casos e causos, e dele ouvi muitos.
Às vezes, o mesmo caso repetidas vezes, pois ele sempre achava que era a primeira vez que estava me contando determinada história. Eu nunca o interrompi para dizer que já havia me contado.  Minha mãe quando o ouvia iniciar o caso vinha lá de fora irritada e dizia: 
- Alziro, ocê já contou isso um montão de veiz. 
Ele olhava pra ela sem entender, pois a audição já lhe faltava há tempos, e murmurava:
- Hã
Ela repetia mais alto ainda e bem perto do ouvido dele:
- Tô te falano que ocê já contou isso um montão de veiz.
Ele ficava sem gracinha, desanimado, passava a mão pela cabeça e desistia de contar o caso.
E daí eu punha a minha mão sobre as mãos dele, que ficavam sempre em cima da mesa, e dizia-lhe baixinho e carinhosamente:
- Pode contar a história pai, eu já não me lembro mais como foi isso. Pode contar, eu quero ouvir.
Então ele ficava feliz da vida, se ajeitava na cadeira e continuava.
Começava falando do pai de um amigo de infância, (que agora ele tinha esquecido o nome), mas que era  filho do Zé do açougue, que casou com a Maria do Chiquinho barbeiro, que era filha do Zé da Oficina.
Contava que havia morrido “daquela doença”“Não é bão ficá falano o nome dessa doença, mas falaro que foi na prosta. Eu até nem sabia o que era essa tal de prosta. Seu irmão que me isplicou”.  
E assim eu ficava ali, horas a fio, sentada com ele ao redor da mesa da cozinha ouvindo os casos, um atrás do outro, enquanto minha mãe terminava o almoço.  
Interessante como sua maratona de casos começava sempre com essa do amigo de infância que havia morrido de câncer de próstata.
Logo depois falava do pai, de como meu avô era um homem bom e morreu trabalhando na roça tocando o carro-de-boi, quando "rebentou uma veia do coração". Meu pai tinha apenas nove anos e meu avô faleceu em seus braços, no arado, longe de casa. Sozinhos, os dois. P
ossivelmente vítima de um infarto ou AVC. 
Depois que casou, meu pai e minha mãe foram morar em Uberaba. Trabalhando metade de sua vida de pedreiro e a outra metade de mecânico de bicletas, criou e educou os seis filhos. Dizia sempre que não tinha conseguido juntar dinheiro, mas que ia deixar como herança o estudo que ia dar para cada um de nós. Assistiu com orgulho a formatura de uma psicóloga, dois médicos, uma economista e duas professoras.

Orgulho-me de ser sua filha!
Saudades... de sua voz trêmula, de seus casos repetidos.

'Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais.'


 
Suzana França
Enviado por Suzana França em 21/09/2015
Reeditado em 16/10/2015
Código do texto: T5389292
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