Lady

Lady, menina morena, 14 anos,linda e cardíaca.O hospital já era quase sua casa de tantas idas e vindas. Morava numa cidade pequena, sem recursos e estrutura para seu tratamento, por isso passava alguns dias em casa e voltava. Todos os profissionais do setor tinham um carinho especial pela nossa Lady, apelido que criamos por ser realmente uma Lady. Sorria sempre, falava baixinho, pausadamente, devido ao cansaço constante provocado por sua doença. Gostava de livros e ganhava muitos ali.

Sua mãe, D. Maria, mulher simples, da zona rural, tranquila, de pouca conversa, era sua acompanhante, sempre. Passava dias e dias naquele hospital ao lado da filha, dormindo em uma cadeira, sempre com seu paninho branco na cabeça e chupando uma balinha de hortelã, que eu acreditava ser para esconder o mau hálito pelos dentes estragados, mas nunca a deixou sozinha.

Como Assistente Social, uma das minhas funções era dar assistência aos acompanhantes dos pacientes do SUS. Servia-lhes refeições, banho e às vezes roupas.

Numa manhã, fui chamada por uma técnica de enfermagem, urgentemente, pois Lady tinha parado. Corri e quando entrei no quarto, que tinha apenas dois leitos a movimentação era grande. Médicos, enfermeiros e técnicos realizavam os procedimentos de ressuscitação cardiopulmonar, com muitos aparelhos e o carrinho de urgência, do qual tiravam muitos medicamentos e aparelhos. Assim que entrei, alguém me olhou e me indicou a mãe com os olhos. Fiquei ao lado dela, assistindo tudo aquilo, toda aquela confusão. Lady inconsciente no leito e D. Maria, aos pés da cama, chorava, batia palmas e gritava:

_Lady, acorda! A gente tem de ir pra casa! Acorda, Lady!

Aquelas foram as palmas mais estranhas que já vi em minha vida. D. Maria mantinha suas mãos muito abertas, os dedos rijos e abertos e batia apenas as palmas das mãos.

Passaram-se minutos que mais pareceram horas, até que o médico me olhou e seus olhos me disseram:

_Saia com a mãe, pois vamos parar.

Contornei a cama, coloquei no ombro seu embornal, peguei suas sacolas plásticas de mercado, coloquei a mão em seu ombro e disse-lhe apenas:

_D. Maria, vamos para minha sala. Vamos deixar que eles cuidem de nossa Lady.

Ela me acompanhou obedientemente, num pranto silencioso. Entramos em minha sala, minúscula, coloquei seus pertences em cima da mesa, fechei a porta, passei a chave, olhei pra ela e falei:

_D. Maria, nossa Lady foi morar com o Pai do Céu.

Sua reação foi imediata. Começou a me bater, me estapeava gritando, chamando por sua filha e eu apenas defendia meu rosto e deixava que seus tapas acertassem minhas costas. Algumas pessoas, ouvindo tudo de fora, bateram em minha porta, oferecendo ajuda, mas eu respondia que estava tudo bem. Ela me espancava, chorava e de repente parou, olhou suas mãos já vermelhas e que deveriam estar ardendo, abaixou-se, tirou do pé o chinelinho velho e surrado e com ele me bateu mais ainda. Continuei protegendo apenas meu rosto, mas meus braços, pernas e costas eram suas.

Durante todo este tempo, ela sabia muito bem que a chave da porta da sala estava em minhas mãos, mas não quis pega-la em nenhum momento. Ela só precisava bater em alguém para desabafar a raiva de perder sua Lady.

Então quando se cansou, encostou na parede e escorregou sentando-se no chão. Fiz o mesmo e ali ficamos um tempo caladas. Ela apenas olhava suas mãos, Não chorei, encostei-me em seu corpo e assim ficamos. Ela me perguntou:

_Até quando ficarei aqui dentro? Respondi:

_ Ficaremos aqui até que chegue sua família. O hospital já comunicou com eles.

E então ela começou a me contar sua vida com Lady, suas alegrias, o sucesso escolar de sua menina, como era carinhosa, suas brincadeiras preferidas, sua priminha favorita, a comida que mais gostava, o vestidinho lindo que ela só usava pra ir a igreja e que tinha ganhado de sua madrinha...Foram talvez duas horas ou mais de conversa e recordações. Apenas isso. Meu corpo ardia e eu percebia em meus braços alguns vergões vermelhos. Assim ficamos, ora caladas, ora conversando até que o telefone tocou e me comunicaram que a família havia chegado. Abri a porta, peguei novamente seus pertences e nos encaminhamos para a portaria onde estavam seus parentes. Deixei-a lá com eles e voltei para minha sala. Havia realizado meu trabalho, que era cuidar sempre do acompanhante. Fechei a porta, arrumei meus cabelos, vesti o blazer, limpei minha calça e blusa onde me foi possível e fiquei ali algum tempo, sozinha. Não chorei, não derramei sequer uma lágrima e não entendia o motivo. Eu queria chorar, mas não conseguia. Abri a porta e continuei minha rotina. Todos no hospital sabiam ou desconfiavam de tudo que tinha acontecido em minha sala, mas ninguém perguntou. Viam vergões em meu braço e também não questionaram. A vida seguiu... A vida sempre segue...

Outro dia e mais outro... Alguns vergões viraram hematomas roxos, que depois foram clareando até desaparecerem completamente.

Dias depois, não sei ao certo quando tempo, se foi mais de um mês ou dois, sei lá, me chamaram na portaria. A mãe de Lady estava lá e queria falar comigo. Desci e assim que ela me viu surgir no início do corredor abaixou a cabeça. Aproximei-me dela, dei-lhe um abraço e ela, sem me olhar, abriu a mão onde estava uma bala de hortelã e me perguntou:

_Cê qué?

Aceitei. Sem levantar os olhos, me disse:

_Vim aqui pedir desculpa prô cê, purque aquele dia te bati muito e ocê não tinha culpa de nada.

Sem olhar pra ela também, respondi:

_Não doeu não, D. Maria. Eu sabia que dentro do seu coração a dor era muito maior, então deixei a dor da carne de lado.

Ela então me olhou, olhou fundo dentro dos meus olhos, por alguns segundos e me disse “brigado”.

Virou as costas e se foi. Abri minha balinha de hortelã, coloquei-a na boca, entrei em minha sala, tranquei a porta e chorei, chorei muito enquanto, calmamente e com as mãos fazia um palitinho com o papel da bala. Nunca entendi porque só então chorei. Acho que foi por causa da balinha de hortelã.

Izis Lima
Enviado por Izis Lima em 19/09/2015
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