Coisas do meu pai.

Agosto se foi, setembro também e não vi papagaios (pipas) no céu. Em minha infância soltar papagaio era diversão predileta dos meninos. Engraçado, mas soltar papagaio era coisa de ‘menino’ e acho que ainda é.

Meu pai era comerciante, tinha uma venda daquelas onde se encontra de tudo, desde pinga no filtro até rolo de corda de bacalhau e fumo em cima do balcão. Ele fazia papagaio todo ano. Mas não era um papagaio comum, era O PAPAGAIO. Quando as pipas começavam a aparecer no céu, a meninada chegava à venda e perguntavam:

_Ô Colinha, que dia que nós vamos soltar nosso papagaio?

_Calma, eu já pedi meu compadre lá do Taquaral para tirar as taquaras pra nós.

Tudo era meticulosamente preparado. O papagaio que meu pai fazia era que nem torresmo e carne na gordura tinha que curtir, linguiça na fumaça...

A ansiedade era muito grande e no dia em que as taquaras chegavam, os meninos ficavam ali admirando, tocando e até cheirando as mesmas. Acho que eles acreditavam que existia alguma forma de magia nas taquaras do Taquaral e meu pai deixava que pensassem assim e ainda floreava mais sobre suas vantagens. E então ele era bombardeado pela euforia dos meninos:

_As taquaras chegaram, Colinha. Vamos fazer o papagaio?

_Calma, não é bem assim. Amanhã nós vamos limpar bem as taquaras pra não ficar nem uma lasquinha nelas.

E no dia seguinte lá estavam todos sentados no passeio da venda, meu pai na porta, com seu canivetinho limpando as taquaras, horas e horas... E todos passavam as mãozinhas para conferir se ainda tinha algum fiapinho. Cada taquara pronta era uma vitória. E os casos corriam soltos sobre os papagaios dos anos anteriores. A noite chegava e elas estavam prontas. O trabalho continuaria no dia seguinte e os meninos diziam:

_Amanhã a gente solta ele!

No dia seguinte a turma voltava e recomeçava o furdunço. Mãe já tinha feito o grude e já estava frio. Pai entregava aos meninos o dinheiro para que fossem a loja de Sô Bayão e comprassem o papel de seda, daquele com o qual minha mãe enfeitava a cruz no mês de Maio. Lá na loja a briga era quente por causa das cores e era disso que pai gostava.

Enfim os papéis chegavam e então a confusão acontecia dentro da venda, pois a confecção do papagaio acontecia em cima do balcão, nos mínimos detalhes, pontinhas encontrando com pontinhas, corte perfeito das tirinhas da rabiola que deveriam ser coladas formando um aro. Ai chegava a hora de colocar as taquaras. Envergadura perfeita! Tudo colado com o grude. Enquanto trabalhavam sempre pediam ao meu pai que contasse de novo o caso do dia em que ele levou o papagaio até nas nuvens e ele voltou molhado. Pai contava e afirmava:

_Esse aqui vai voltar molhado!

O êxtase era tanto que os meninos plantavam bananeiras, batiam palmas e gargalhavam à vontade! Nós, as meninas, ficávamos de longe, só apreciando.

Pronto o papagaio!Perfeito, rabiola enorme, todo colorido e chegava a hora de encher a linha na manivela. Ah, a manivela! Essa era show, foi feita pelo meu avô em sua oficina, toda de madeira. Todos tinham de pegar nela quando meu pai a tirava lá de cima de uma das prateleiras da venda. Enquanto alguns voltavam à loja para comprar um carretel de linha os outros observavam a limpeza da preciosidade. A linha era cuidadosamente enrolada para não embolar. Tudo pronto! Seria no dia seguinte a grande festa! Mas meu pai ainda colocava mais uma pitadinha de emoção na cabeça dos meninos quando dizia:

_É pode ser que seja amanhã. Vamos ter que esperar o dia amanhecer e ver como está o vento. Se não tiver nenhuma folha caindo no chão e elas só estiverem se remexendo de leve nas árvores, então o tempo vai estar bom.

E no dia seguinte é claro que o tempo estaria perfeito! Chegou o grande momento. Todos ficavam no passeio da venda, um corria com o papagaio e o danado levantava voo. Era mágico...E riam...gargalhavam e gritavam! O papagaio voava e a manivela passava de mão em mão enquanto os outros gritavam:

-Dá linha!

-Faz ele dar cabeçada!

Meu pai observava a linha na manivela e de repente falava:

_É,essa linha não vai dar pra levar o bicho nas nuvens e ele voltar molhado. Flavinho, vai na loja de seu pai e pede ele um carretel de linha pra nós!

Era um galope só e o carretel chegava. Amarrava a nova linha e continuavam. O papagaio estava alto, mas ainda não nas nuvens. Era hora de fazer outro menino correr até loja do pai, do avô, do tio e pedir outro carretel de linha.

Eu sempre me perguntava por que meu pai não colocava logo 10 carretéis de linha naquela bendita manivela. Hoje eu sei que esse era seu prazer, ver a ansiedade dos meninos em busca das nuvens e o quanto correriam por isso. A praça ficava cheia de crianças na festa do papagaio que voltaria molhado das nuvens e ele subia tão alto que às vezes era difícil localiza-lo no céu. Pai então pegava a manivela cuidadosamente das mãos de algum menino e fingindo estar sentindo algo estranho, dizia:

_Este está molhado! Olha só como a manivela está pesada.

E ela novamente passava de mão em mão e todos concordavam na maior euforia.

E então no final da tarde era hora de recolher o papagaio. Era o momento da comprovação do quanto ele tinha ido alto. Ainda tinha sol...Era sempre assim!Recolhiam e o papagaio não estava molhado. Mas pai explicava:

_Ele estava molhado! Ele foi nas nuvens, mas como nós recolhemos o bicho ainda com sol, o calor secou o danado. Mas no ano que vem a gente vai recolher ele já bem de noitinha e ele vai voltar molhado.

Não adiantava todos os pedidos para soltarem novamente no dia seguinte. Nisso meu pai não cedia: era só uma vez por ano!

E lá se foram mais de 40 anos e eu sempre me lembrando do papagaio. Os meninos cresceram , cada um tomou seu rumo e na semana passada, encontrei um dos meninos, já adulto, na padaria e comentamos sobre o papagaio. Ele me falou de suas lembranças e emoções que vivia naqueles dias e no final expôs sua revolta de anos:

_Izinha, eu nunca entendi porque depois que a gente recolhia o papagaio sempre sobrava aquela linhada toda para eu desembolar e enrolar numa lata de óleo. A gente nunca soltava com ela no ano seguinte...

Coisas de meu Pai...Coisas de Colinha...

Izis Lima
Enviado por Izis Lima em 19/09/2015
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