10 FILHOS
Minha secretária disse que uma mulher queria falar comigo. Pedi que a mandasse entrar. Eu sempre parei qualquer coisa que tivesse fazendo para atender quem precisava falar comigo, pois nunca gostei de esperar e também não conseguiria mais me concentrar na tarefa sabendo que alguém me esperava.
D. Graça entrou em minha sala feito um furacão, nervosa, chorando, sentou-se em minha frente e já foi logo disparando:
_ Olha aqui, Mariza, eu tenho 10 filhos, não tenho nada pra comer em casa. Você tem de me ajudar porque eu pulei na rua que nem uma cabrita na campanha da prefeita, trabalhei que nem doida pra ela pedindo voto, ela prometeu arrumar minha casa e até agora não fez nada disso. A assistente social lá da Policlínica não quis comprar o remédio para meu filho e então...
Interrompi sua fala e disse-lhe calmamente e pausadamente:
_Olha D. Graça, a senhora está muito nervosa e assim não vai dar pra gente conversar. Vai lá fora, dê uma voltinha, tome uma água, se acalme e depois volte pra gente levar um papo numa boa!
Creio que ela não esperava por esta minha atitude, pois também calmamente se levantou e saiu.
Algum tempo depois a menina me disse que ela estava de volta. Pedi que entrasse e ela chegou mais calma, meio envergonhada, esfregando as mãos e olhando para baixo. Procurei uma posição bem confortável em minha cadeira, que por sinal girava, indiquei-lhe a outra e ao se assentar e colocar as mãos em cima da mesa, fiz o que sempre fazia com todos e todas que me procuravam: olhava os dedos polegar e indicador. E os dela estavam completamente amarelados.
Ela percebeu meu olhar e retirou-as rapidamente de cima da mesa colocou – as no colo, fora do alcance de minha visão.
Então comecei:
_D Graça, a senhora entrou aqui da primeira vez, muito nervosa e me disse que tem 10 filhos e eu lhe pergunto: algum destes 10 filhos é meu? Eu me deitei com você para fazer algum deles? Ela riu e respondeu:
_Cê ta doida, Mariza, é claro que não!
_Então eu lhe digo que não tenho nada a ver com o fato de você ter 10 filhos. Me falou que pulou na rua feito cabrita na campanha da Prefeita. Eu lhe mandei pular?
Ela ia ficando meio desconfiada e até mesmo assustada com a conversa. E respondeu:
_É claro que não. Cê ainda nem morava aqui, ne?
_Pois então, eu falo pra senhora que eu não tenho nada com isso, se a senhora pulou ou deixou de pular na rua. Bom, a prefeita prometeu arrumar sua casa, não é mesmo? Eu sou a prefeita desta cidade?
_É claro que não. Você é Assistente Social, ne?
_Sou e por isso vou lhe dizer que também não tenho nada a ver com as promessas da prefeita. E pra terminar a senhora me disse que a minha colega da Policlínica não quis comprar o remédio de seu filho, não foi mesmo?
Neste ponto da conversa ela já sabia o que ouviria e ela mesma respondeu:
_É, eu sei. A senhora não é ela e não tem nada com isso, ne? Eu não devia ter falado isso mesmo...
_Pois é D. Graça, então vamos lá, sem maiores “devorteios”, o que a senhora quer de mim, que não seja falar dos outros que não lhe atenderam?
_ Eu preciso de uma cesta básica porque lá em casa não tem nada pra comer hoje.
Fiquei calada alguns segundos e deixei que o silêncio pesasse. Depois, ainda como quem nada quer, falei
_D. Graça mostre-me suas mãos.
E ela, muito sem jeito, mostrou-me as mãos com as palmas viradas pra baixo. Então pedi:
_Vire as mãos pra cima. Eu quero ver seus dedos novamente.
Ela virou e já foi logo se defendendo:
_Isso é amarelo de cigarro.
Mostrei-lhe as minhas mãos e disse-lhe:
_Eu também fumo e minhas mãos não estão amarelas assim. Pediu-me uma cesta básica e eu vou lhe arrumar, mas eu gostaria que soubesse que eu posso fazer pela senhora muito, muito mais é muito mais mesmo do que só lhe dar uma cesta básica, mas isso depende de sua vontade. Se for da sua vontade clarear seus dedos, carrego água na peneira pra senhora, mas a gente limpa.
(Eu já conhecia os dedos de quem usava esse maldito crack, posso identificá-los à distância.)
Ela olhou as mãos, abaixou-as novamente e me disse:
_Hoje eu só quero a cesta mesmo.
Abri a gaveta da mesa, tirei o cartão do supermercado, entreguei-lhe e disse:
_Vou estar aqui lhe esperando voltar pra gente limpar isso ai.
Ela se foi. Semanas depois voltou querendo que eu pagasse sua conta de luz, aliás, 3 contas para evitar o corte. Paguei, porém antes batemos um papinho, ela sempre me contando suas dificuldades, sem falar no crack. E assim fomos tocando o barco, um pedido, uma prosa, um pedido uma prosa ...
Até que um dia ela finalmente chegou, sentou, colocou as mãos sobre a mesa e me disse:
_Mariza, não agüento mais! Me ajude a limpar minhas mãos.
Ai então foi o começo de outra longa história.
Colegas conheço muito bem o ditado de “Não dar o peixe, mas sim ensinar a pescar”, mas nós mesmas, como profissionais temos de ter paciência, tolerância, disponibilidade e sobretudo boa vontade para pescarmos o nosso ‘peixe’. Se o outro não confiar em mim, nunca conseguirei realizar verdadeiramente o meu trabalho. E se para pegar o meu peixe eu precisar jogar 10 cestas básicas como isca, acompanhada de uma boa prosa, que assim seja! Mas peixe que cai na minha área, com certeza entrará para o meu samburá.