A sexta bala
Doutor Wallace desistiu da vida. Chorando com o álbum de fotos da família sobre a cama ele carregava o revolver 38, lentamente na sofreguidão das ultimas coisas que faria enquanto ser vivo. As filhas pequenas, molhadas pela água da velha lagoa da fazenda Jamorão, onde se lia no cabeçalho da gravura, Rafaela, Mauriele e Cintia, há muito perdera o contato, os jogos e a falta de carinho fez-nas-nas desde muito cedo filhas de generosa Conceição, antiga emprega da família que se casara após a morte de Emanuele mãe das meninas. Sobre o criado mudo um copo com água e a caixa de um ansiolítico de tarja preta, provavelmente um controle de rotina das noites. A cama simples com uma cueca listrada dependurada na cabeceira e um rosário branco ao lado. Três balas e um leve giro no tambor da arma como se quisesse desistir de engatilhar naquela quantidade máxima de projeteis, mas algo falava de dentro para fora que o queria a qualquer custo. A mão tremia como se estivesse sendo movida por um fio elétrico que disparasse pequenos choques, a sexta bala caiu e rolou sob a cama, ao agachar-se para reavê-la sentiu forte dor na região lombar, poderia ser a coluna e seus bicos de papagaios, ou um jeito qualquer pela rápida ação de inclinar-se bruscamente. Ao reaver a posição de pé, percebeu que a porta do banheiro estava aberta e o espelho frontal reluzia, provocando uma estranha sensação da sua imagem. Com a bala presa entre os dedos andou vagarosamente sem se perder de dentro do espelho. Os ruídos do salto do sapato lembravam as marchas de sete de setembro na cidade natal, havia anos, mas numa rápida viagem se viu de braços dados com a mãe, vestindo camiseta branca e uma bermuda azul, as meias também eram brancas dentro do sapato preto, a felicidade era intensa e os sorvetes vendidos pelo senhor de jaleco colorido era um dos maiores motivos, ainda salivava com a lembrança do gosto de morango com leite que lhe diziam ser creme holandês. Todavia a nova realidade estava diante do espelho com rosto inchado de cicatrizes antigas, abriu a boca e viu os dentes amarelos e quebrados pelo bruxismo que o acompanhava desde criança. Fechou os olhos e se afastou andando de costas como se a própria imagem representasse a divindade de grande Império. A bala foi colocada junto às outras, certificou-se de que todas estavam devidamente encaixadas e fechou a janela recusando-se a olhar para a rua com seus barulhos e contrastes. A imagem das filhas voltou a incomodar, mas um carro desgovernado em alta velocidade invadiu o mesmo espaço, aquelas pessoas, o ponto de ônibus e um saldo de dez mortos, ele embriagado sendo hostilizado e ameaçado pelos transeuntes e parentes das vitimas, também apareceu à esposa falecida implorando para não morrer e ele lentamente comprimindo o embolo da seringa, seus últimos olhares foram de pavor com o Cloreto de Potássio lhe sufocando as células de oxigênio. Para desvencilhar dos pensamentos virou a cabeça para um lado e enxergou seu nome em um quadro moldurado na parede, Dr. Wallace o médico do ano... Honras ao mérito. Mas sobre o quadro surgiu à face de um cachorro com chifres na testa, latindo como se o chamasse para brincar em um gramado sem horizonte que era incendiado por uma velha cadavérica de cabelos longos e vermelhos pingando sangue. No desespero apanhou a arma e disparou com sede dentro do ouvido. O corpo inerte caiu batendo na lateral da cama e ancorando no chão. O diretor gritou; “Corta!” e a equipe se abraçou, alguns choravam verdadeiramente pela dose de realismo empregado pelo ator, mas ele não se levantava, quando o diretor de fotografia notando algo estranho na imagem capturada na lente, chegou próximo e descobriu que o sangue que saia não era cinematográfico, uma das balas de festim fora substituída por verdadeira.