De coração novo: verdade?


          1. A bordo de uma maca cheirando a éter percorri os corredores movimentados e cheio de dor do hospital, até desembarcar, tremendo de frio e de medo, no Centro Cirúrgico. Foi um sufoco, parceiro!
          2. Durante o percurso, e não menos quando prostrado na incômoda mesa de cirurgia, senti-me, como dizia o saudoso escritor Josué Montello (1917-2006), irreversivelmente imerso na "solidão do ocaso". Até a santa anestesia fazer efeito, quase morri de saudades dos meus e do mundo...
          3. Naquele instante, repleto de incertezas, me vi frente a frente com a morte; embora, àquela augida sala eu houvera chegado em busca de uma vida mais saudável, com a eliminação dos motivos que há algum tempo a faziam cheia de problemas.
          4. Acontece, que, nessas idas a Centros Cirúrgicos, por mais banal que seja a cirurgia - e era esse o meu caso -, sempre bate aquela desconfiança de que se está fazendo uma viagem sem retorno. Mesmo levando-se em conta o progresso da medicina e o preparo dos homens de jalecos azul ou verde, no manejo dos afiados bisturis.
          5. Para superar essa ansiedade e acentuada incerteza que as salas de cirurgia provocam, o paciente, penso eu, deve necessariamente ser um cara de uma fé inabalável em Deus. 
          6. Este breve introito, faço-o ainda convalescente. Mais para confirmar, a quem interessar possa, que sobrevivi a uma cirurgia realizada nos subúrbios do coração.  Com seus cabelos brancos, meu coração precisava de uma bengala para continuar sua marcha, até onde Deus quiser...
          7. Implantaram em mim um marca-passo!!!            Aqui está ele ajudando o meu velho coração a atravessar, com a indispensável desenvoltura, as intempéries que a terceira idade traz.
          Um parêntese: não me falem, por favor, em "melhor idade". No meu modo de entender, a melhor idade é sem déuvida aquela curtida aos 20 anos, ou seja, no tempo lindo da juventude.
          8. Me dizem que, agora, estou de coração novo. Verdade? Não quero, porém, que somente o coração-músculo re-surja revigorado, com a providencial ajuda do marca-passo.  
          Desejo que ele, agora renovado, me faça sentir, com maior intensidade, as alegrias e as delícias do meu dia a dia; e também me ajude a suportar com naturalidade  os "temporais" que continuarão rondando o meu cotidiano.
          9. Não quero que meu coração "beliscado, fechado, ferido, preso, estraçalhado, quebrado em pedacinhos" como acontece com os corações, na poesia e na música do Lupicínio Rodrigues (1914-1974), o criador da dor-de-cotovelo.
          10. Quero um coração amante; amando a tudo e a todos, no decorrer dos tempos em que ele vai continuar batendo...
          Por isso, com a implantação do marca-passo, acabo de adotar como lema este conselho de Santo Agostinho (354-430): "Ama e fazes o que quiseres." O filho dileto de Santa Mônica, bispo de Hipona, teólogo, filósofo, Doutor da Igreja não dizia bobagens...
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 10/09/2015
Reeditado em 21/10/2019
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