Considerei escrever um romance
Agora que releio o Memorial de Aires, me ocorreu que um dia eu já considerei a possibilidade de escrever um romance. Foi na época em que, graças à minha mãe, eu havia desandado a ler os livros de Machado de Assis. Até então, eu não escrevia nem crônicas. Isto é, arranhava uns textos em prosa e ia bem nas redações escolares, nada mais. Meu gênero favorito naquele tempo eram as letras de música, mas só as letras, pois de música eu nada entendia. Por sorte, pouca coisa desse material sobreviveu aos nossos dias, e quando eu comecei a escrever em jornal, ou seja, a registrar provas contra mim, o conteúdo já era bem menos comprometedor.
Mas eu dizia que já considerei escrever um romance, e não apenas considerei como inclusive tomei uma caneta e me dispus a escrever a história em um caderno. Devo ter escrito duas ou três páginas, no máximo. É certo que o tamanho dos romances tem diminuído, mas acho que ainda não a esse ponto. Não lembro muita coisa do que escrevi, mas sei que criei um diálogo entre o narrador – ou seja, eu mesmo – e uma irmã. Com toda a certeza, eu estava imitando as primeiras páginas do livro que havia lido há pouco tempo – justamente o Memorial de Aires.
O Conselheiro Aires, afinal, tinha uma irmã chamada Rita, com quem já dividia episódios, conversas e impressões logo no começo do livro. Pareceu-me uma boa maneira de iniciar um romance, e então tratei de arrumar também um homem e sua irmã para a minha obra. Como gostei do tom confessional que o Conselheiro usava para escrever, logo decidi que eu também escreveria em primeira pessoa – desde cedo eu ansiava por me esparramar no que escrevo.
Ora, mas o Conselheiro Aires não era o Machado de Assis. O meu narrador, no entanto, era eu sem tirar nem por. Ou melhor, era eu no século XX vivendo como burguês carioca do século XIX – tamanha era a minha tentativa em imitar o ambiente do livro machadiano. E a prova de que eu não havia me separado do meu personagem foi a de que este dificilmente saia de casa – eis aí um retrato fiel da minha adolescência. Um dos diálogos que criei com minha irmã – essa sim, fictícia – foi justamente sobre isso: ela tentava me convencer a ir com ela para algum lugar e eu dava alguma desculpa, ou melhor, alguma “escusa”, como convém ao século XIX.
Se bem me lembro, minha irmã me chamava então de pusilânime, uma palavra que eu havia aprendido há pouco tempo e que me parecia um tanto empolada, de modo que não pensei duas vezes antes de usá-la em minha obra literária. E mais não me lembro da história, que felizmente não levei adiante. Algum tempo depois eu descobriria o encanto da crônica. Nela, eu não preciso me distanciar do narrador e nem mesmo da realidade. Também não preciso ter muita noção de onde quero chegar, ao contrário do romance. Sem falar que duas ou três páginas já são mais do que suficientes para um gênero tão breve como a crônica.
Outro dia eu confessarei outra das minhas tentativas frustradas, que foi a de escrever sonetos com a linguagem do século XVI. Eu me via como um pastor de ovelhas cruzando o caminho de Dom Quixote. Mas basta, já estou confessando coisas demais. É coisa típica da crônica, mas convém não exagerar.