Ei, espere aí
Na primeira vez que aconteceu João foi pego desprevenido.
Ele passou as compras. O velho mercadinho do bairro o qual frequentara desde moleque e ao qual já tinha se acostumado. E acostumara-se ainda ao velho hábito de Rômulo, o bigodudo e barrigudo dono do estabelecimento, que insistia em negar o restante do troco de seus queridos fregueses.
– Ora, – dizia – posso ficar te devendo dez centavos? Não, não, espere, tome aqui uma balinha.
Desse modo o assunto se resolvia.
Os fregueses mais jovens como um dia fora João, eram os que mais sofriam com os ataques de balas do Sr. Rômulo, aquele pilantra. E o grande problema é que as dívidas não se limitavam a dez centavos e muito menos a uma única bala. Quando se é criança e até pouco valor se tem o dinheiro as coisas são de uma maneira, contudo, quando se é adulto a figura é outra. Antes ele não se importava, mas agora, como adulto...
Foi então que um plano preencheu sua mente. Uma bela surpresa para o dono do mercado.
No primeiro dia, era início da semana, ele fez sua compra comum. Pão, leite, biscoitos... o essencial para tomar seu simples café da manhã antes do trabalho e lanchar a noite ao chegar. A cédula escolhida para pagar a conta? Foi a de mais valor que tinha na carteira.
Sr. Rômulo franziu o cenho e acenou a cabeça com desgosto.
– Ora, – disse – assim você me complica moleque. Tem dinheirinho melhor aí não?
– Desta vez não, meu amigo. É o que tenho.
E Rômulo aceitou. Tomou a nota com seus dedos miúdos e achatados, conferiu se era verdadeira e destravou o caixa se pondo a somar. Nota foi, nota veio, moedas caíram no balcão. E o comerciante voltou a fechar a cara.
– O povo hoje em dia fica passando cartão e deixa meu caixa vazio, ora essa. Posso ficar te devendo uns troquinhos?
Os troquinhos a que se referia Rômulo eram exatos dois reais e cinquenta centavos. João teve o impulso de querer conferir o caixa do velho, não era possível que a amizade deles – que se limitava a um bom dia raro – pudesse definir que João ficaria sem seu troco.
Mas ele aceitou dessa vez.
– Espere aí, tome.
Balinhas multicoloridas caíram na mão de João e ao chegar em casa o nada estúpido rapaz tratou de guarda-las em um pote o qual etiquetou com a palavra “troco”.
Não tardou para voltar ao mercado para uma nova compra. Assim como seus pais, seu irmão e até a namorada passaram por lá em suas próprias rotinas e, como um ritual de família muito bem organizado e orquestrado, depositaram as balinhas e docinhos no pote selecionado.
Dessa forma chegou um dia que o ato automático se perdeu na cabeça de João. E ele só foi notar o que tinha acontecido com seu pote cerca um pouco mais de um mês depois. Um mês de depósitos de doces e balas. E o pote não suportou, estava cheio e transbordava. O momento tinha chegado e João não via a hora de colocar o plano malévolo em ação. Fechou o pote da maneira que conseguiu, enfiou-o debaixo do braço e saiu em direção ao mercado.
Selecionou seus produtos e dirigindo-se ao balcão foi recebido pelo sorriso caloroso do Sr. Rômulo. No fundo, João deixava claro em sua mente que o velho não devia ser de maneira alguma mal-intencionado. Mas... como a mãe o ensinara, o que é certo é certo e não há coisa mais certa do que isso.
O pote foi colocado no balcão no momento de pagar a conta.
– Pode contar. – disse João. – Cabe ao senhor dizer quanto vale cada uma, imagino.
Rômulo olhou a cena assustado. Fez uma careta e coçou a testa.
– Que que é isso aí?
– Moeda de troca, pelo o que aprendi.
O velho soltou uma gargalhada.
– Mas não aqui, né moleque?
– E como não? No pote há um mês de trocos que o senhor deu a mim e minha família. Sendo doce a substituir dinheiro do balcão para cá, não vejo motivo para o contrário não ser válido também. Hoje eu pagarei com bala.
João falou muito calmamente atento as expressões incrédulas do velho comerciante. Sentia-se muito bem por colocar o coitado na parede daquela maneira, como antes ele e muitos clientes tinham sido colocados ao perderem parte de seu dinheiro com balas e doces. O velho não respondeu. O velho não tinha resposta.
Mas com um pouquinho de sorte, o cliente atendido depois de João não levou todo aquele pote para casa como seu troco em bala.