O FÉRETRO
Quando os irmãos Cristina e Marcos foram encomendar os funerais da avó, aconteceu um diálogo digno de registro. Antes de transcrevê-lo, é preciso que se explique as características desses dois personagens citados:
Para começar, Cristina era conhecida por todos naquele Departamento de Féretros da Prefeitura, instalado dentro do Hospital.
Explica-se: ela é médica e responsável por um setor do Hospital, onde todos os pacientes devem receber tratamento intensivo, quer dizer, casos extremamente graves.
Ela é por natureza meio circunspeta, a profissão quase que exige austeridade e não estava sendo nada fácil providenciar o féretro daquela vovó tão querida!
Até aí, conseguimos entender.
Já o Marcos, sempre teve um senso de humor muito apurado. Na família se dizia que a cada três palavras, cinco eram piadas ou “pegadinhas”. Geralmente atendia ao telefone dizendo assim: Funerária Santa Luzia. Sua tristeza é nossa alegria! Sempre tinha alguém que caía em alguma brincadeira. Ninguém fica bravo com ele, não tem como!
Quando a avó era viva, ele chegava e dizia a ela:
- Vó, posso contar uma piada pra senhora?
- Claro, meu neto. Dizia ela.
E ficava com a cabecinha inclinada para o lado a esperar a tal piada. No final, ela ria tanto, tanto, que às vezes até tinha acesso de tosse (morreu de enfisema pulmonar). A família dizia que ele ainda ia matá-la de tanto rir! E ela respondia que morreria feliz!
Esse dia chegou, para tristeza geral, contudo, todos se recusavam ficar lamentando, pois ela jamais gostaria de os ver tristes.
Morreu do tal enfisema, não foi por causa do Marcos!
Apesar da situação, o senso de humor dele não perdeu a força, o que valia muito naquela situação para toda a família.
O diálogo digno de registro foi o que segue:
- Qual o nome do falecido? Pergunta o funcionário do Departamento para Cristina.
- Senhora Elsa Santos.
- Idade?
- 85 anos.
- Sexo?
(Pensa o Marcos: sendo – senhora – só pode ser feminino! Só se ela era hermafrodita e a gente não sabia).
- Feminino, é claro. Responde Cristina.
- Deixa filhos?
- Sim.
- Nomes?
- Mathilde, com th e Rachel, com ch.
- Sexo?
- Moço, com esses nomes, só pode ser - feminino - para as duas.
- São maiores de idade?
- ?!
(A essa altura, Marcos cochicha para a irmã: Só se pariu as filhas com 67, 70 anos ou, então, ainda estava amamentando!!).
- Fica quieto, Marcos. Cochicha ela em resposta.
- Sim, claro, são maiores de idade.
- Qual seu grau de parentesco?
- Sou neta.
- De qual dos filhos?
- Que filhos? Ela só teve filhas.
- Está bem, de qual das filhas?
- De nenhuma delas. Sou neta da falecida.
- Ah! Bom. Seu nome?
- Cristina.
- É normal?
- ?!
(Pensa o Marcos: - Não, é retardada).
- Normal? Pergunta.
- Sim, o seu nome.
- Ah! É normal, é sem h.
- Quer que saia no jornal?
- Quem, eu?!
- Não, a nota de falecimento.
- Não será preciso, não foi nenhum assassinato. Diz o Marcos.
- Sossega, Marcos. Não, obrigada, a família é pequena, deu tempo já de avisar todo mundo. Corrige Cristina.
Marcos vira-se para a irmã e diz:
- Pequena? Filhas, genros, oito netos e respectivos cônjuges, 18 bisnetos, parentes indiretos, amigos de várias cidades etc. etc...! Pequena!?
- Deixa pra lá, Marcos.
- O documento de propriedade está em seu nome, Drª. Assine aqui, por favor.
- Não, não no meu nome, por favor, a dona é minha avó, é para ela.
- Não, senhora. Tem que ser em seu nome. A falecida não pode assinar o compromisso de compra e venda, não acha?
Diz o Marcos:
- Não acho, tenho certeza!
- É claro.
- Pois então. Tem que ser em seu nome, a senhora põe no túmulo quem quiser.
- É para minha avó, já disse. Mas vai constar que é ela que vai ficar lá na sepultura?
- Sim, claro, já anotei.
- Então, está bem.
Depois de assinar o papel, Cristina vira-se para o irmão e diz pesarosa:
- Puxa vida, ainda não tenho nada de meu e minha primeira propriedade é um túmulo! ... E nem sou eu quem vai ficar nele!
- De que você está reclamando? Ainda bem, não é mesmo, Cris?! Responde depressa o Marcos, consolando a irmã.
À noite, durante o velório, todos cansadíssimos pelos atribulados dias da doença da velha senhora, estavam literalmente “apagados”, com frio e sono. Foi quando o Marcos aproximou-se do caixão e falou em voz alta, dirigindo-se à figura imóvel:
- Puxa vida, Vó, justo hoje que eu tinha uma piada tão boa pra senhora! Nem deu tempo de contar!
- Pois conta, Marcos, disse um dos presentes, não fica com isso engasgado, não.
Pra que foram dizer isso!!! Ele contou a piada das três velhinhas que se gabavam, cada uma, de ainda ter os sentidos aguçados. Uma se gabou de ainda enxergar sem óculos; a segunda, de ter boa memória e a última delas diz:
- Ainda tenho os ouvidos ótimos! Tomara que Deus me conserve assim.
E bate com os nós dos dedos na madeira para dar sorte.
Rapidamente, ela mesma, em seguida, vira-se para a porta e diz:
- Quem será que está batendo?!
(Podia ter bom ouvido, mas já estava meio gagá!).
Nem tão engraçada era a piada, mas foi a conta. Começaram todos a rir, a rir como num desabafo, tentando cada um a seu modo controlar-se sem resultado, enquanto ele, muito sério, pela primeira vez, ficou olhando tristemente para a vovó tão querida!
... Que não podia achar graça...