Dói

_ Não é nada do que você está pensando!

Frase típica dos que são pegos em flagrante. Deve ser o calor do momento, o susto. Não acredito que pensou que roupas jogadas pelo chão, gemidos de prazer e ele penetrando com força aquela mulher me soaria como qualquer outra coisa que não fosse sexo, e com agravante, na nossa cama, o que me levou há dois meses atrás quando comprei o edredom, a intenção era suportar o inverno cruel e não foi propaganda enganosa da vendedora garantir que ele esquentaria até a nossa relação.

Uma súbita crise de vergonha, culpa, ou cinismo mesmo, fez com que se cobrissem, ela escondia o rosto, mas reconheci pelos cabelos loiros e a tatuagem no braço esquerdo, que se tratava da vizinha da frente, uma agradável e casada mulher, mãe de dois filhos e que mudou-se há menos de um ano. Não éramos íntimas, mas certa vez fomos convidados para um jantar em sua casa, ao qual retribuímos depois. Coincidência ou não, concordamos que o seu marido, uns dez anos mais velho, tinha cara e vocação para corno, um desses comentários preconceituosos que fazemos ao menos uma vez.

Em algum momento da vida me imaginei numa cena de traição, por algum motivo era sempre a "vítima", talvez seja o antigo conceito de que os homens são os predadores que nunca se apegam de verdade a uma mulher e nós, as pobres coitadas com vocação natural ao perdão. Com o lençol preso à cintura, levantou-se, tentava me dizer coisas que eu não conseguia ouvir. Era como se assistisse a um filme mudo, mas não era uma comédia do Chaplin, estava mais para um daqueles dramas do Almodóvar.

Ela foi rápida ao vestir-se e imagino, igualmente rápida ao se despir antes da transa. Passou por mim feito um raio, de repente achando que partiria pra cima, protagonizaria um escândalo digno de novela mexicana, fazendo com que todo o prédio soubesse, inclusive o marido, com vocação para corno agora confirmada. Vi um vulto loiro, tive uma sensação ruim e a certeza de que ela era o último dos meus problemas, o que menos importava.

Éramos nós dois, como sempre fomos. Ter filhos era um assunto recorrente, ainda tímido. Éramos nós dois desde aquela festa de casamento de amigos em comum. Ele me chamou pra dançar, pisou no meu pé algumas vezes, mas era tão agradável, que fingi não ligar, podia ensiná-lo depois. Passamos por todas as fases, o flerte, as risadas, as confidências, ficamos a noite inteira conversando, não nos faltou assunto, agora faltava, não a vontade de falar, eu queria dizer tanta coisa, só não conseguia, ele desistiu, sentou na beirada da cama, ainda nu, ainda suado e fingindo tristeza, ou sentia.

Todas as teorias que supunha ter sobre não ser dona de ninguém, não ter o direito de exigir exclusividade e achar que poderia tolerar com facilidade um deslize, foram por água abaixo. Tinha que decidir por parar ou continuar. Fui em sua direção, acho que tinha arrependimento nos olhos, e lágrimas. Um tapa, foi a única coisa que pude fazer já que as palavras não vinham.

Peguei o carro e saí meio sem rumo, vou gastar gasolina, vou gastar tempo, tentar pensar e é claro, volto pra casa, volto pra um conversa inevitável e talvez definitiva. Poderia perdoar, mas acho que não esqueceria, não olhando todos os dias a vizinha loira tatuada, o corno do seu marido, o canalha do meu e o edredom suado. Nessas horas não importa se é a cantora famosa, a top model internacional, a atriz de Hollywood ou a escritora de gaveta, dói. E nem sempre passa.