Eu deito no telhado de uma casa qualquer, olho pro céu e invento uma nuvem que chove sorrisos, bem em cima de mim...

Era noite .Não das melhores .

Alguns vagabundos faziam o que sabem fazer de melhor : bebiam .

Cantavam também , meia dúzia deles entorno de uma fogueira do estacionamento do mercado abandonado. Alguns cantavam mais alto , outros mais baixo , mas todos desafinados , e por vezes músicas diferentes . Gostava de me sentar ali , eles me ignoravam a maior parte do tempo . Só lembravam de mim quando a bebida acabava e precisavam ratear a grana da próxima garrava . Então um deles se aproximava do meu carro , eu estaria lendo , fumando ou sonhando numa distância segura que me permitia ouvir a conversa deles . Então eu ajudava com algumas moedas , o vagabundo agradecia e voltava para seu bando . Quando finalmente conseguiam a garrafa , me arrumavam um copo e me filavam um cigarro . E assim convivíamos harmonicamente .As vezes até duas vezes por semana .

Eram sempre os mesmos desgraçados , as mesmas músicas . O que acontecia de novo eram os problemas , esses sempre mudavam ou se agravavam .

Nessa noite estacionei meu carro no mesmo lugar , apaguei os faróis e me recostei no assento . A lua bem grande brilhava amarelada . Os vagabundos já haviam acendido a fogueira e começado a cantoria . Não demorou muito um se desgarrou do bando e veio na minha direção . Usava jeans surrado e moletom GAP vermelho . Veio no escuro como um fantasma mantendo passos zumbificados abraçando a si mesmo para espantar o frio .

– Aqueles caras me disseram que você ajudaria com a próxima garrafa .

Disse prostrado ao lado da porta a pessoa . Bom , não era uma voz masculina , era uma garota , usava touca ninja e tremia de frio , e apesar dos pesares não cheirava mal .

– Eles disseram é ?

– Sim , disseram que ajudaria .

– O que mais eles disseram ?

Ela levantou a touca e mostrou seu rosto , estava sujo , o batom vermelho demais parecia ter sido passado por uma criança .

Falei para ela que não tinha dinheiro .

– Mas eles disseram que ajudaria com a proxema garrafa .

- Sinto muito

Ela retornou para o bando da mesma forma que veio , abraçando a si mesma . Ela pontou para o carro , um dos caras acenou gentilmente . Buzinei , dois toques curtos .

Não demorou muito o que acenou se desgarrou e partiu na minha direção . Ele bateu no vidro . Abri .

– A garota veio gentilmente pedir uma colaboração para a garrafa , e ela disse que você lhe fez uma proposta indecente . Não sei quem você pensa que é , mas não foi legal de sua parte .

Tirei algumas moedas do porta-luvas e lhe entreguei .

Dei a partida e fui embora .

Dois meses se passaram , eu passava pela rua e via os vagabundos no estacionamento , a mesma coisa , a mesma cantorias . Agora quando sentia que precisava ficar sozinho ia até a ponte de ferro . A prefeitura tinha posto dois postes de concreto de cada lado impedindo que carros passassem por ela. Ficava atrás de uma empresa de sabão e servia para atravessar o rio . De noite ninguém passava por ali , porque não levava a lugar nenhum . Você atravessava e dava para um beco escuro com algumas casinhas .

Passavam das duas da manha quando ouvi uma tosse . Era o tipo de tosse doente . Olhei na direção e vi que alguém se aproximava lentamente . Ouve outra tosse , depois a chama na ponta de um cigarro brilhou mais forte , ela ficou parada por um tempo e depois tornou a se mover . Por um momento senti medo , até que o corpo minguado e inofensivo parou sob a luz do poste , o único que funcionava , e pude ver seu rosto magro e sujo .

– Hei , tem um cigarro ?

Perguntou a garota , a mesma do estacionamento de semanas atrás , dando um bom e profundo último trago antes de jogar a bagana morta no chão .

Tirei um cigarro do maço e lhe mostrei , ela avançou em passos curtos como um cão na busca por um osso oferecido . Ela parou a minha frente , apanhou o cigarro e tateou os bolsos .

– Droga , alguém roubou meu isqueiro .

Lhe ofereci meus fósforos .

– Mas que droga , homem , quem é que usa fósforos hoje em dia ?

– São baratos . E tem mais : nunca me roubaram uma caixa de fósforos .

Ela acendeu seu prego e disse :

– Isso me soa um pouco sovina . Você deve ser um filho da puta sovina .

Fumou em silêncio por um tempo . Uma estrela cadente , ou poeira espacial , não sei bem ao certo , rasgou o céu , foi como um raio numa noite de chuva , mas silencioso . Então percebi que nunca fiz um pedido , nuca corri atrás do pode de ouro no final do arco-íris .

– O que você pediu ?

Perguntou a garota , tremendo de frio . Ela estava sempre tremendo , talvez porque estivesse doente , pouca carne para proteger os ossos , falta de bebida no sangue . O real motivo jamais descobri .

– Você tem cara de que faz pedidos para as estrelas , tem cara de boiola , tem cara de quem vive sonhando acordado .

– Tenho , é ?

Ela passou a mãos pela minha testa afastando uma mecha de cabelo .

– Você tem cara de quem não come uma mulher a muito tempo.

Ela aproximou um punhado do seu corpo contra o meu . Cheirava a cigarros , cheirava a vinagre , fedia a suor de uma semana , mas quando seus olhos se aproximaram o suficiente para que eu pudesse enxergar bem no fundo deles , ali estava alguém perdida querendo ser encontrada . Não era diferente de mim , não era diferente do cobrador o ônibus que vivia com fones nos ouvidos , do cara de terno que auxilia pessoas idosas nos caixas dos bancos , da coruja que nos observava de cima do poste . Era só mais uma garota buscando respostas no lodo , recolhendo pedaços de um quebra cabeças incompleto e preenchendo o vazio com sangue, parada de frente para um quadro estranho num museu caro , uma simples mancha de bosta saída de um cu que agora todos admiram e criam teorias .

Afastei seu corpo assustado quando vi meus olhos refletidos nos seus . Confusa disse :

– Foi mal , cara . Tudo bem , se teu lance é rola , tudo bem , só não me venha com todo esse pretensiosismo .

– Você tenta agir como uma puta , eu disse , mas só quer atenção , e isso é repugnante . Não vejo problemas em ser uma vadia barata e alcoólatra , não vejo problema em ser um gay ou veado sem pregas , não me importo com os viciados que vendem as louças de prata da mãe para comprar o próximo pico . Não me importo com a originalidade . Com o sufocamento do talento e espontaneidade , isso sim , isso sim me irrita e dá asco . Não existe problema nenhum em ter um vício sincero , em assumir o fracasso , na verdade , pessoas assim são proativas , estão um passo a nossa frente , mais perto de adquirir o controle do destino certo . O que me irrita , no final das contas , é agir de forma falsa . É o mesmo que um suicida que acorda assustado de um pesadelo antes de se espatifar no chão .

A garota soltou fumaça no meu rosto , com um ponto de interrogação na testa .

– Você se acha melhor que os outros , fica ai sentado sozinho nessa ponte achando que deus vai aparecer e lhe revelar qualquer coisa grande . Agora engula essa : você nasceu para morre. O que acontece entre esses dois pontos é corda .

Ela se virou , rebolando exageradamente com seu traseiro inexistente e sumiu no escuro , pouco depois ressurgiu .

– Sabe de uma coisa ? Me lembro de você . É aquele babaca do estacionamento . O que aconteceu , sumiu , parou de ir lá . Os rapazes te assustaram ?

Todo seu desprezo por mim era infundável . Soava genérico.

– Seus amigos só deixaram de parecer interessantes , esse foi o grande porém , o porque de eu ter deixado de ir lá .

Ela me olhou com desdem . Disse que eu era um louco . Um tarado .

- Um voyeur , é isso que você é .

– Que seja .

Ficou parada a me observar por um tempo . Me cansei daquela palhaçada .

– Bom , vou dar o fora daqui , baby .

– Vai fugir de novo ?

– É o que os covardes fazem .

– Eu te assusto ?

– Não .

– então o que ?

– Só acho que esse papo durou mais que o necessário . Você está ai , se oferecendo e despejando insultos . Te pago uma bebida se topar sair daqui e terminar a noite de forma decente .

– Escuta aqui , eu não sou uma prostituta . Não vou dá pra você em troca de uma garrafa .

– Só não estou a fim de beber sozinho .

Sai primeiro , a garota veio depois quando o carro já estava ligado . Se sentou ao meu lado e praguejou de dores nos pés .

E isso foi tudo .

**Titulo : Los Hermanos

09/09/2015

14h21m

Cleber Inacio
Enviado por Cleber Inacio em 09/09/2015
Código do texto: T5376128
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