Ônibus Sem Fim
Estava numa estrada sem almas, em algum lugar no deserto, em um entardecer rubro dos trópicos. De súbito, como em uma miragem, materializou-se ao longe um casebre e uma grande família estava na porta, debulhando milho. O céu não era mais o mesmo, mas um firmamento de Michelangelo. Rumei para a humilde família, mas antes que pudesse delinear seus rostos, me vi atrás de um imenso portão de ferro, de frente para um cemitério. Uma turma de garotos passou conversando calorosamente debaixo do céu nublado. Pedi por ajuda, mas percebi então que estava mudo, minha língua travava minha voz. Gritei mais alto e nada, nada... Senti uma intensa angústia e me senti perdido. O cenário muda, e de repente estou em um ônibus, seguindo pela mesma estrada desértica, mas não havia nenhuma família agora. Sem pensamento, eu era apenas um fantasma. Clamei para o motorista parar, mas ainda não tinha voz. Acordei de sobressalto, gritando. Meu amigo íntimo perguntou: que foi?
Eram cinco da madrugada, tudo breu ainda. E esse breu era eu mesmo. Relembrando do sonho, me peguei perguntando: onde será que ficam os pontos finais de todos esses ônibus que vejo, que gentes eles devem levar, aos trancos; pra que recônditos da cidade eles levam? Então descobri que nada conhecia da cidade onde morava e antes de pegar a estrada da minha vida, precisava conhecer minha própria alma nessa cidade. Acendi um cigarro e contei quanto dinheiro possuía e vendo que tinha o suficiente, decidi viajar pela cidade de ônibus e penetrar todos os rostos que pudesse.
Às seis, com o sol já lançando seus raios de fogo implacáveis, ganhei a rua e peguei o primeiro ônibus que me levasse para o centro; e chegando lá perambulei pelos calçadões impregnados de comércios e livre capital. As pessoas não paravam, sempre tagarelando, comprando, vendendo, enganando. Não pronunciei palavra, apenas encarei suas faces para entender o que elas escondiam. Depois de gastar uma boa hora nisso, sem pensar nada mais, peguei um ônibus de bairro, que levava para um lugar qualquer. Ele estava lotado de gente entendiada, e se via isso, nada saía, tudo terminava, ou estava para terminar, e eram apenas oito da manhã! Fui seguindo e seguindo, até o ponto final, que era um loteamento novo. "Ponto final, rapaz." Desci e vasculhei.
Gastei um tempo em divagações, o sol era escaldante. Sentei debaixo de uma árvore e senti um cheiro forte de mijo. Eram miasmas de gerações perdidas. Vi muito lixo por ali. Era apenas a cidade e seus dejetos chegando. Uns três moleques apareceram na estrada de terra, perto de onde me sentava. Jogaram ideias quando me viram. "Porra, que se foda", pensei. Eles chegaram perto. "Ó o mano"..."Opa, e ai?"..."Perdeu o rumo foi?"... nisso o cara do lado, que parecia chapado e maluco, me deu um chute na coxa e me encarou. Levantei, mas sem me por em posição de brigar com algum deles, quase não reagi com palavras. "Passa a grana caralho!", nisso um outro tirou um canivete velho - pensei nas bactérias do tétano. Não havia levado celular, mas só minha carteira. Paralisei, sozinho no meio do nada. Mastiguei isso por um tempo indefinido, até que senti alguém tirando a carteira do meu bolso de trás - "Peraí cara!", falei, "pega a grana aqui, mas documento é uma merda de tirar de novo". Saiu isso fraquinho e sibilante. Ainda digerindo meu medo. Os caras sorrateiramente tirando a grana da carteira, jogaram depois ela no chão e vazaram correndo. Minha única reação foi a de pegar a carteira do chão e caminhar para o ponto final do ônibus e esperar ele chegar. Depois de algumas experiências aprendi a colocar dinheiro separado nos bolsos, havendo apenas 5 reais na minha carteira. Enquanto isso, a aula corria solta na faculdade. O ônibus chegou e eu entrei, estava morto de fome.
Entrei no restaurante mais barato que encontrei e mastiguei calado a comida e lembrei do versinho que havia pensado no ônibus: "sob o sol, aglomerados em ônibus sem fim, rodando..." Admito que é um verso horrível, mas no momento significou alguma coisa. A caixa do restaurante era gentil e percebendo seu sorriso sincero, agradeci o troco. Resolvi dar umas voltas pelo centro observando o mesmo movimento, mas sempre gente diferente e um ar encardido e quente. Andei ruas e ruas e de repente vi que já não estava mais no centro. O labirinto que é a cidade levou-me para algum entroncamento misterioso, de casas simples e cachorros latindo. Continuei andando. Andei por quase três horas sem parar, contemplando senhoras nos bancos de passeios, a falta de crianças na rua, algumas pessoas que passavam apressadas, destinadas.
Em uma ruela estreita passei por um boteco copo sujo, como se diz, e seco de sede como estava, entrei e pedi uma cerveja. Alguns caras esfarrapados pela vida conversavam nas mesas de madeira carcomida, entre paredes de reboco. Um velho de barba pintada e bem arrumada conversava com o dono do bar sobre algum jogo de futebol. A cerveja desceu refrescando minhas ideias. Agradeci a cerveja, paguei e pulei fora. Corri uns dois quarteirões só pra sentir meu coração gritar na tarde. Parei no primeiro ponto de ônibus que vi e peguei o primeiro ônibus que passou. Estava suando e escorrendo pensamentos. Eu estava num impulso de conhecimento e nada parava meus desejos, sentia-me recoberto. O ônibus estava praticamente vazio e num bairro qualquer uma senhora negra e gorda entra. Conhecia o motorista e o trocador e partiu numa conversa serena com eles; estava indo visitar a filha - sua netinha tinha pegado uma gripe.
Um pouco de silêncio no ônibus e barulho de freios e em pouco tempo estava no ponto final. De novo o trocador falou: "Ponto final!". Desci e caminhei sem rumo naquele fim de tarde. Noutro entroncamento do labirinto, numa esquina torta, percebi uma lanchonete e resolvi me mover pra lá. Entrei, era um lugar de limpeza extraordinária, apesar de ficar numa rua poeirenta. Sentei no balcão extenuado. Uma menina de quinze anos, de simples graça feminina, veio ver o que eu queria. Olhei pra ela por um tempo sem falar nada, me encantei. Ela sorriu timidamente e perguntou de novo: "O que o senhor vai querer?". Sem pensar em nada, aconchegando minha barba, respondi: "O que você costuma comer a essa hora do dia?". Apesar, ainda olhava pra ela, ao que me respondeu: "Bom, tomo uma coca gelada e como uma coxinha com catupiri.". "Então é isso.", respondi.
O pai começou a observar meus olhares pra ela e ficou de olho. Não pensava em nada, só admirava seus trejeitos elegantes e simples, na medida do meu devaneio. Dai a pouco ela chegou com meu lanche, que devorei em instantes. De tão impressionada, ela ficou me observando comer. Agradeci e fiquei fitando o vazio. O sol já vinha caindo no seu sono diário e a garota morena parecia esperar que eu falasse alguma coisa. Sem mais, dei uma boa olhada no pai dela, que me encarava. Me despedi dos dois e sai cambaleando. Lá fora, na rua, li a placa: "George Lanches - a melhor coxinha da região".
Calado, de olhar quase sombrio, mas meu cérebro ativo. A todo tempo penso em versos ou reflito sobre coisas cotidianas, salvo quando estou muito cansado pra isso. E senti os versinhos daquela menina escrever seus sentidos em mim e nada mais. Mas quando entrei no ônibus os versos transbordaram loucos. Nem pude captá-los por inteiro, muito menos desejei escrevê-los; foram a recompensa última do meu dia.
Cheguei em casa por volta das sete da noite. De espírito pacífico cumprimentei meus amigos, fui pro quarto, acendi um novo cigarro e deixei a música entupir meus ouvidos. De repente senti uma invasão de tudo, relembrei o dia e quando vi estava com meu avô e eu menino gordinho sorridente sentado no colo da minha vó e eles me contando histórias ancestrais. Pensei, minha sagga é como um darma ou carma (sei lá!) que me empurra gritando: "Pra frente, pra frente!".
Dormi exausto na noite morna. Acordei e relatei tudo para minha alma ainda sonolenta.
Ass.: G.T.