Sertões

São duas e sete da madrugada. Estou sentado no sofá do escritório tentando não pensar em nada. Sinto o vazio que o fim da leitura de '2666', de Roberto Bolaño, criou ao redor de mim. Vazio de abismo e silêncio. Não é angústia; o livro não me angustiou, pelo contrário, me deu força, me iluminou.

Livros que me mostram o abismo – que me pegam pelos cabelos e me colocam deitado na beira dele de forma que eu não só o veja, mas também sinta o seu bafo frio – me revigoram. Foi assim com 'A paixão segundo G.H.', de Clarice Lispector, com 'Graça infinita', de David Foster Wallace, e agora com '2666', de Bolaño.

Não sei se o que estou sentindo é felicidade, nunca entendi bem esse conceito, mas é uma sensação boa, de serenidade, de paz.

A cada abismo que a grande literatura abre ao meu redor, sinto-me mais forte, mais livre. Muita coisa pequena que me incomodava perde sua importância. É como uma limpeza da alma, uma retirada de entulhos do ser, a vida de dentro vomitando o que não lhe faz bem. A sensação é estranha, mas muito boa.

Na parede à minha esquerda há uma pequena pintura que mostra uma maçã, uma tigela branca com detalhes florais e um garrafão azul escuro, quase preto, sobre uma mesa amarela. Fico imaginando o que pode haver mais à direita, ou mais à esquerda desses objetos, além dos limites da moldura. Uma janela, talvez. Ou uma porta aberta, e, do lado de fora, um campo de trigo amarelo infinito brilhando ao sol, como os de Van Gogh...

Na outra parede, bem na minha frente, há uma foto em preto e branco da cidade de Praga, em moldura preta: uma rua estreita e sombria, com prédios barrocos de três ou quatro andares em ambos os lados. O céu está nublado, o chão molhado, nenhum pedestre à vista, nenhum carro. Com certeza é rua antiga, das muitas que há em Praga, que leva ao rio, à ponte, à catedral, ao velho castelo no alto do morro e aos bosques das cercanias, e além dos bosques, mais adiante, mais adentro...

Fecho os olhos e me vejo caminhando livre por campos abertos sem fim...

Sertões...

Minha próxima leitura já está decidida:

'Grande Sertão: Veredas'

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 03/09/2015
Código do texto: T5368907
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