A raça dos homens bons

Rubem Braga, em uma de suas belíssimas crônicas, lembra que os jornais escolhem as notícias que transmitem e têm clara preferência pelos aspectos degradantes de nossa sociedade. Os jornais, diz lá o cronista, noticiam tudo, tudo, menos a vida. Os atos de solidariedade humana estão distantes das páginas impressas, que escolhem o crime, a violência, a corrupção...

E o cronista está mesmo muito atual. Hoje, talvez, ainda se conviva com a agravante de um excessivo destaque a esses personagens do crime. Eles têm seus nomes estampados em letras garrafais nas primeiras páginas, e as tevês abertas, buscando alto retorno financeiro, dedicam-lhes diariamente horas e horas de sua programação. E a vida? Essa, sim, construída pelos homens bons, dificilmente, ganha os holofotes.

De vez em quando, entretanto, para emoção de todos nós que nos condoemos de toda sorte de maldade exibida, alguém rouba um pedacinho da cena e planta uma lição, que cala muito profundamente em nossas consciências.

Recentemente, o Jornal Hoje, da Rede Globo, mostrou uma senhora, simples, humilde, negra e suas três lindas filhas. Ela falava do carinho que tem pelas meninas e que nada – euro, dólar, real – valia aquele tesouro. A mãe exemplar ensinou que educava com a força do diálogo e que, embora não tivesse estudos, gostava muito de ler. As meninas, por sua vez, deram o depoimento de carinho pela mãe e disseram que a ela tudo deviam e lutariam muito para honrar aquele amor e retribuí-lo. Está vendo, Rubem Braga? É a mídia, velho Braga, divulgando a vida.

A mesma Rede Globo, no Jornal Hoje, deu ênfase ao caso do pedreiro lá de Uberaba, que devolveu a uma escola de idiomas os R$ 11 mil reais que encontrara e que serviriam para o pagamento dos funcionários. Ele descobriu o endereço e devolveu o dinheiro, que levaria mais de um ano para ganhar como operário. A diretora procurou a família e deu bolsas de estudo para os pais e os filhos estudarem o espanhol. Que aprendam e aprendam muito para também na língua de Cervantes plantarem gestos de solidariedade!

Outro primoroso momento de vida é seguramente o caso do tratorista que se recusou a demolir uma casa, em que pese à determinação judicial que fora cumprir. Ele se condoeu e não teve coragem. Era uma casa construída em terreno alheio, mas, felizmente, após o episódio, o proprietário do terreno acabou indenizado pelo poder público e a casa permanece lá, de pé, abrigando pessoas hoje mais crentes na solidariedade.

Estivesse entre nós, o velho Rubem Braga, certamente, poetizaria esses três lindos momentos de vida, que furtaram espaço ao crime e ao desamor. Felizmente, esses três episódios são apenas poucos dos muitos exemplos proporcionados por uma raça que não se extinguiu, nem se extinguirá: a raça dos homens bons. Felizmente, também, eles continuarão anonimamente, com seus atos nobres, se contrapondo às torpezas do nosso tempo.

(*) Publicado, originalmente, em julho de 2003, no site Aprendiz:

http://www2.uol.com.br/aprendiz/n_colunas/coluna_livre/id210703.htm