O MENINO X

Precisei passar um período em sala de aula para observação. Nesse caso precisava perceber crianças com problemas de aprendizagem, selecionar as que tinham distúrbios e também as

que estavam em atraso por motivos ligados a afetividade ou outros fatores que requeriam investigação. Foram-me apontados três casos. E de cara percebi que o grau de atraso era gritante. Num dos casos, o menino x demonstrava não saber ler, escrever e seu interesse pelo ambiente escolar era zero. Os outros dois, eram casos parecidos que não valem a pena vir a tona.

Optei por fixar meu olhar no menino x, e sem que ele percebesse que era alvo de observação persistente fui me achegando. Ora ia, ora voltava a sentar junto e assim, ia criando laços, para que dali pudesse surgir uma ‘escuta’. Enquanto eu o observava pude perceber coisas que ao olhar da professora já era visível - demonstrava insensibilidade à dor. Pequenino, raquítico, sujinho, caderno rasgado, um toco de lápis... Passei a tocá-lo, olhar nos olhos, mostrar interesse por cada atividade que iniciava. Após o recreio, e tentando suportar heroicamente calor, sala superlotada, professora heroína; vi-me conversando com ele e percebi com surpresa que estava se esforçando para fazer a tarefa. E quando ao final da aula, tarefa feita, os coleguinhas haviam ido embora descobri que o menininho havia sido esquecido na escola. Ninguém se lembrara de ir busca-lo. Quando foram feitas umas ligações percebi um mal estar entre as três responsáveis que, apesar de ter concluído seu horário de trabalho, ficaram até que ‘alguém viesse buscar o pequerrucho’.

Foi aí que percebi que não havia um ambiente acolhedor em casa. Sua falta de reação à dor era porque nunca lhe chamavam pelo nome. Pancadas, cascudos, beliscões, torcidas de braços, chutes eram comuns na sua vida. A linguagem que ele conhecia e driblava com desenvoltura era os xingamentos. A má vontade que vinha da parte de quem ficava em casa para ‘cuidar’ e dar afeto que era essencial para seu desenvolvimento pleno lhe era empurrada goela a baixo todos os momentos.

Abandonei o caso. Vi que por mais que insistisse iria ficar sem resposta por parte dos responsáveis por ele. Decidi por acompanha-lo por meio de outros caminhos. Diretor, coordenador, professor vêm a anos lutando contra um sistema que não avança, e não seria eu que tenho apenas três meses para observar, entrevistar a família ( não consegui nenhuma das entrevistas agendadas), aplicar algumas provas e direcionar o caso para outros profissionais competentes. Optei por manter um canal de comunicação com ele e através desse canal mostrar-lhe o quanto ele é especial, que ele é um vencedor e que o amanhã dependerá de suas escolhas, que ele tem ao seu lado pessoas prontas para lhe dar a mão.

Casos como esse são multiplicados todos os dias. As autoridades nada fazem. As leis existem, porém não são cumpridas. Quem insiste em enfrentar os gigantes tombam com a cara cheia de bala. Enquanto nossa alma chora por dentro, nossas crianças vivem um terror camuflado por sistema falho, hipócrita e incoerente. Nossa realidade é outra. E muitos sabem disso. Mas, não há interesse em por fim a uma guerra que é milenar. Crianças, velhos, deficientes e pobres nunca tiveram voz, apesar dos estatutos e outras ‘criações’ que estão engarrafadas nos gavetões e gabinetes dizem o contrário.

Deixo meu protesto e minha indignação. Pelo menos desabafo minhas mágoas e dores que perpassam por meu olhar todos os dias.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 02/09/2015
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