Quando eu lembro que sou negro?
Por Mathias Gonzalez
Eu me lembro que sou negro, quando me chamam carinhosamente de “nego ou neguinho”, ou, quando querendo valorizar minha raça, me chamam de “negão”, mas sobretudo me lembro que sou negro quando me chamam de “negro”, como se essa palavra fosse um carimbo de inferior, de pouco ou nenhum valor.
Eu lembro que sou negro, quando estou dirigindo meu carro novo importado pelas ruas ou numa rodovia e sou parado por uma blitz... ok, até aí tudo bem, muita gente também é parada, mas eu me lembro que sou negro quando os guardas (brancos, até negros também) olham meus documentos com uma cara desconfiada e perguntam repetidamente: o que o que senhor faz mesmo? Certa ocasião um pediu para ver o meu contra-cheque que, por acaso, eu tinha na minha valise para casos como esses.
Eu lembro que sou negro, quando estou em uma reunião social, onde a maioria das pessoas é cor branca e eu não sou conhecido, e, só por estar usando terno preto, muitas pessoas vem até mim perguntar onde fica o banheiro ou me entregam os casacos para eu pendurar em algum lugar. Outros me entregam a chave do carro para eu estacionar ou me confundem com os seguranças.
Eu me lembro que sou negro, quando entro em um restaurante mais sofisticado e o garçon branco me olha com uma certa apreensão e, depois de me entregar o cardápio, fica apontando os pratos mais baratos do menu, talvez com receio de que eu não possa pagar a conta depois.
Eu me lembro que sou negro, quando ouço alguém branco comentar sobre um homem negro que está casado com uma mulher branca apontando que provavelmente é porque ele tem muito dinheiro.
Eu me lembro que sou negro, quando alguém comenta sussurrando numa reunião de acadêmicos que eu devo ter entrado na faculdade ou feito uma pós-graduação por meio de cotas.
Eu me lembro que sou negro quando disputo uma vaga com outras pessoas brancas e o empregador diz que eu sou super qualificado para o cargo por isso não poderei ser contratado, e dão a vaga para o meu colega branco que tem as mesmas qualificações que eu.
Eu me lembro que sou negro, quando saio correndo para pegar um transporte porque estou atrasado e um policial me para, como se eu estivesse fugindo de alguma coisa, ou porque eu tivesse tomado a carteira de alguém.
Eu me lembro que sou negro, quando ouço comentários maldosos das pessoas dizendo que o meu sucesso deve ter uma boa explicação: eu tive padrinhos, eu tive um alto QI (quem indica), do contrário, eu não teria conquistado o que conquistei.
Eu me lembro que sou negro, quando entro num transporte coletivo e vejo que o assento ao meu lado é o último a ser ocupado e percebo também que eu sou o único negro naquele veículo.
Eu me lembro que sou negro, quando passo por pessoas nas ruas e elas tapam o nariz com o dedo ou seguram a bolsa debaixo do braço com força, ou me olham como se eu fosse assalta-las...
Eu me lembro que sou negro quando dizem que meu cabelo é ruim, em vez de crespo, que as mulheres negras deveriam alisar seus cabelos para ficarem mais bonitas. Eu me lembro que sou negro quando me comparam a um macaco, não por ser engraçado, mas por ser considerado um animal inferior aos humanos e por terem pelos negros.
Eu me lembro que soou negro quando entro em uma loja mais sofisticada e os vendedores viram a cara ou vão atender a outros clientes que, na opinião deles, por serem brancos, devem ter mais dinheiro do que eu.
Quando me olho no espelho eu não me lembro que sou negro... me vejo como uma pessoa como qualquer outra, cheia de erros e defeitos, cheia de desejos e frustrações e sobretudo uma pessoa capaz de olhar o outro com respeito, independente da condição social dele, da religião, da opção sexual, da aparência física ou outra característica que o torna distinto.
Existem outros momentos em que me lembro que sou negro, quando destacam a cor da minha pele sem avaliar meu caráter, minha personalidade, meu valor como ser humano, minha generosidade, minhas ações de bondade, minha capacidade de amar e sobretudo de perdoar aqueles que, quando me olham, só conseguem ver a cor da minha pele.
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Mathias Gonzalez
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Psicólogo e Escritor
Montreal - Canadá