Criar

Ele senta ao piano, depois de perambular por longos instantes pela grande sala. Tem o olhar baixo, os cabelos desgrenhados e feições bastante fechadas. A sua frente, sobre o piano, um copo com ainda algum uísque restando ao fundo. Era um excelente uísque, um bourbon na verdade, bastante caro, produção tradicional e artesanal, que ganhara certa ocasião, nem lembra ao certo de quem. Posiciona os dedos das duas mãos, bastante entreabertos, sobre o teclado. Passam-se intermináveis segundos sem que se mexa daquela posição. As costas apresentam uma certa curvatura. Momentaneamente, parece desistir daquela postura, mas é somente para estender os braços, com os dedos entrelaçados, como a alongar-se. Então, retorna à posição anterior, não sem antes fazer movimentos com o pescoço para ambos os lados. No silêncio da grande sala, o som dos estalos tem total liberdade para ir e vir. Na parede, atrás do piano e numa posição mais elevada, um velho relógio mostra as horas de maneira errada. Deveria estar pelo menos umas duas horas atrasado, assim como suas ideias. O pêndulo parece apresentar a mesma hesitação daquele que não encontra inspiração para criar. Encontrando alguma coragem enfim, as primeiras notas enchem o salão, algumas dissonantes no entanto, o que só aumenta a desagradável atmosfera que se instalara desde que o uísque findou na bela garrafa. Ele levanta bruscamente e caminha até a janela, visivelmente perturbado com a terrível combinação de um uísque que acaba, de um relógio que atrasa, e de uma inspiração que não surge. Do lado de fora, mais um dia que amanhece e, assim como os outros, frio e cinzento. Lembra que há pelo menos três dias não dorme, e o desconforto dessa constatação é nítido em seu semblante. Não há ninguém nas ruas, não pelo menos até onde seu olhar alcance. O silêncio é absoluto. Nem cães latindo, nem motores de carros, não se ouve nada além do pêndulo de um relógio que nem funciona corretamente. As notas dissonantes cessaram, enquanto o olhar continua perdido entre muros, árvores e casas, todos frios e cinzentos.

Sérgio Kuns
Enviado por Sérgio Kuns em 01/09/2015
Reeditado em 08/09/2015
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