Tempos de infância -Sequência.
Outra coisa que para os meus pais era questão de orgulho, é que tivessemos sapatos de couro, 'Vulcabrás", que usávamos somente para estudar ou sair ( sair era pegar ônibus), evitando assim os famigerados "Verlón", que para eles era o supra-sumo da pobreza extrema. Em casa, apenas tamancos, chinelos, ou tênis baratos, descalços nunca, pois nesse ponto eram muito cuidadosos, haviam vivido a guerra e conheciam as mazelas de perto, nos falando sempre sobre o tétano, tifo, vermes, e até cacos de vidro.
Meu pai era um homem estudado, e havíamos tido uma boa vida, que por percalços a perdemos. Hoje entendo a riqueza que o sofrimento traz, o seu enorme aprendizado de vida, e os verdadeiros valores que só acrescentam, deixando as raízes intactas para sempre.
Para nós, crianças, tudo estava bom, se os nossos pais estivessem bem, não sentíamos a mudança como eles, e aprendíamos tudo muito depressa, era um mundo mágico que se abria a cada amanhecer, e em nossa inocência, tentávamos passar entusiasmo a eles, contando o que aprendíamos de prático, cantando novas canções, sobre a classe, o gol que havíamos feito no recreio, e tudo que fosse novidade. Não pedíamos nada, sabíamos da situação, mas o meu pai sempre nos trazia gibís usados de algum sebo do mercado da Lapa, e fotonovelas Capricho para aminha mãe.
Aos nove anos conheci o traço do Maurício de Souza, na "Folha de São Paulo", cujo sucesso vinha crescendo com o público infantil, a ponto de criarem o encarte " Folhinha ", destinada às crianças. Um dia quando me tornei pai, colocamos o nome de Mônica em nossa filha, e ela sabe que é em razão disso tudo, o que a deixa muito feliz. Vim conhecer o Mauricio numa palestra da "Metodista", quando terminava a faculdade, foi muito legal.
Em casa não havia geladeira, e os mantimentos eram comprados aos poucos, dia a dia, para um consumo rápido; meia dúzia de ovos, um quarto de bolachas, meio quilo de arroz, meio de café ( moído na hora), um filão de pão, não era hábito comprar pãezinhos, uma garrafa de leite, e quase tudo à granel...e lá vinha eu com a sacola , por quadras ( nada perto quando se tem oito ou nove anos), e com a bendita sacola então, pareciam léguas. O meu irmão nunca ía, ele reclamava muito, e a minha mãe me explicava ; " Vai você que não briga na rua", no começo achava injusto, e questionava, dizendo que deveríamos revezar, mas os argumentos não a sensibilizavam o suficiente, e aprendi a me calar em obediência. Parava de poste em poste para descansar, trocava de mão, e vinha me inclinando até em casa, quase sempre com um ovo quebrado, levando bronca. Aos poucos passei a tirar proveito, e fui aprendendo a ver o mundo a minha volta, e as tantas coisas legais que ele oferecia, fazia amizades, ficava mais esperto na hora de comprar, a reparar nos diferente carros, nas casas, no cotidiano das pessoas, nas palavras ...e como dizia Vinicius de Moraes, a criar asas nos pés, e não puderam mais me segurar.