BEM DEVAGARZINHO, UM HERÓI ANÔNIMO

Ele chegava ali com a expressão corporal mais autêntica das quais se tem notícias: era a sua alma que falava por ele e imediatamente sua luz iluminou o ambiente.

O palco encenava uma história: Pediu licença, entrou na sala, esticou a mão cuja pele sulcada já carregava inúmeras máculas senis, pontualmente na face e na asa do nariz a esboçar um possível pré- carcinoma por excesso de raios solares, disse um "bom dia" como se um guindaste lhe puxasse a voz, tirou o chapéu surrado de tempo, confeccionado daquele couro preto já desbotado de sol, mas jamais de vida.

Percebi que tentou "desentortar" a coluna para melhor se assentar na cadeira de plástico duro, e ali, muito atentamente, esticando seus ouvidos já cansados dos decibéis do trabalho de anos a fio pelas ruas e avenidas, ouviu atentamente a boa noticia sobre seus exames rotineiros de saúde.

Parecia surpreso quando soube que tudo estava muito bem.

"eu também queria calibrar a minha próstata, doutor", proferiu ele no auge dos seus oitenta anos bem sofridos e bem vividos.

A explicação lhe foi dada: a próstata aumentada pelo tempo ainda não lhe obstruia a eliminação dos líquidos, dos ultra- filtrados oriundos das depurações do corpo. Apenas ganhou a receita dum filtro solar.

Mas também sempre é preciso se depurar a alma, e há que se ter um tempo para ouvir os revezes do mesmo tempo que corre sem tréguas, a deixar cicatrizes, cujas máculas não se nota num primeiro momento.

"E a vida como vai?"-perguntou o médico.

Então ele contou tudo brevemente ensinando que perguntas importantes nunca devem ser feitas ao vento da pressa e dos desinteresses ilegítimos.

" Doutor, o senhor já sabe, desde os trinta e cinco anos quando me aposentaram pela perda de dois dedos na máquina do trabalho, eu vendo sorvete na rua. Vendia, há pouco tempo atrás, quatrocentos picolés num fim de semana, a dois reais cada um. Um real para o dono da sorveteria e outro para mim. Hoje doutor, não vendo cem, as pessoas não têm mais dois reais para o sorvete, sei que precisam mais do pão".

Ali, meio de soslaio, percebi que o doutor imediatamente engoliu a seco a se perder nas analogias possíveis ao momento do mundo.

E o homem continuou:

"E hoje doutor, tá difícil porque o corpo não ajuda mais, estou um pouco envelhecido mas não desisto não, mesmo assim consigo empurrar o carrinho para chegar até meu ponto de venda, vou bem devagarzinho e chego lá, trabalho doze horas todo dia, preciso ganhar a vida porque o pessoalzinho lá de casa está bem mais devagar, e fico feliz em saber que estou bem para continuar, obrigado doutor...quando paro fico desesperado por não poder trabalhar. Vejo o senhor todo dia passando no meu ponto, qualquer hora para lá na esquina para tomar um sorvete de tangerina, o melhor que tenho, será meu presente ao senhor!".

Então levantou com dificuldade "engripante", agradeceu mais uma vez, se despediu e se foi bem devagar, a deixar um perfume de encantamento e admiração.

Aquele homem talvez pudesse ser uma miragem, mas não era não: era um herói anônimo, como tantos que existem por aí: furtados, sem voz e sem chance de caminhos vindouros lá atrás.

Saiu dali deixando uma nítida e inequívoca sensação : a de que na vida, sabe-se lá por que cargas dágua, os destinos são bem distintos, a despeito das distintas vontades inabaláveis e das intenções mais nobres que impulsionam os seres pelos tantos caminhos.

Deve ser o mérito roubado da alguns que diferenciam as rotas preguiçosas, nada agregadoras e nababescas de outros.

Mas decerto que ali estava um homem feliz, tal era notório, e a vida só poderia lhe devolver, louro a louro, toda a sua essência de glória, prestígio e respeito, os que advêm quando se carrega como troféu o legítimo fruto do próprio trabalho sustentável.

"sem o seu trabalho o homem não tem honra"-já poetou Gonzaguinha.

E feliz aquele que leva tal verso como aprendizado recente pela vida toda.

É essa a riqueza que homem nenhum rouba do outro: a honra de ter existido com a decência da labuta das próprias mãos, sem nunca precisar tocar no que nunca lhe pertenceu.

Ainda que o tempo nos fustigue todos os sentidos...sigamos a despeito dos "porquês", quase sempre a dos deixar sem respostas.

Nota: em homenagem aos temas verídicos da vida.