Pegadas no caminho

O que seria da vida se a gente não tivesse a chance de deixar sequer uma marca, um risco, um traço? Ao caminhar vida afora, marcar presença é necessário. Mesmo que seja ferindo os pés e deixando-os sangrar nas trilhas. Inda que sejam pegadas de dor. A sabedoria consiste numa certa resignação revoltada que não nos deixa calar. A pior doença é a indiferença, é o dar de ombros e não se importar sequer com a lágrima que rola. Lágrimas são rios que navegam nossas tristezas em leitos de margens múltiplas: escárnio, prazer, inveja, delírios, sonhos e utopias. Tudo se mistura e deságua numa foz, algures, onde os olhos ainda não alcançam. Mas desconfiam. Pressentem. Intuem. E não se desarvoram. E não praticam o choro da autopiedade, da comiseração, do lamento vazio. É preciso ter o choro exato, daquela dor que vale a pena. E saber que existe, para além de todas as tristezas um porto destino. Sim, um porto destino. Mas para chegar lá é preciso ter a coragem de se lançar. Pois existem cais que nos amarram, que nos prendem, que nos acomodam na zona de conforto. É preciso o gesto de içar as velas, mesmo trôpegos, mesmo na dúvida, mesmo com pouco vento.

Pois o vento se reinventa. E da tempestade se faz chance de navego. E num momento sinto que enquanto há vida, enquanto respiro, enquanto pulsa o coração, enquanto corre poesia em minhas veias, a vida vale a pena. Essa mesma vida que é um misto de alegria, dor e espanto. Lágrima doce é invento de poeta. E choro sincero é o que melhor tempera a solidão. E solidão é a oportunidade de olhar com olhos de dentro. É solitude, um jeito de enxergar abismos e, quem sabe, paraísos. E perceber que as fronteiras do existir oscilam entre esse gesto de acarinhar as palavras e ouvir a voz do silêncio que inaugura sempre um novo alumbramento e nos faz cúmplices da descoberta. O único perigo da vida é deixá-la passar em branco, sem ter valido a pena.

Urge acariciar as palavras. E redescobrir a nascente das estrelas para se reinaugurar em luz a cada dia. Escreviver é celebrar a jornada da vida e saber de onde vem o sopro azul das ternuras. Algures, há um ninho chocando poesia.

(Dedicado a Kathleen Lessa, pois este texto nasceu de um comentário que deixei em poema dessa minha amiga talentosa).

José de Castro
Enviado por José de Castro em 30/08/2015
Código do texto: T5364671
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