Líquido Vermelho

Estava sentada ali há horas, pensando. Queria ver o filme de toda a sua vida dentro da sua cabeça, toda a sua história, todas as memórias guardadas lá dentro. Não sabia por quê. Três deles já haviam passado. O que estava esperando? Suspeitava ser o medo, porque nunca fora corajosa, sempre desistira das coisas difíceis e fugira das complicações. Ora não era isso o que estava prestes a fazer mais uma vez? Desistir? Pensou ser covardia também. Estava fugindo pela centésima vez, contudo, de uma maneira um tanto mais radical. Mas continuava sendo uma fuga. Escapismo. Sairia dali assim? Reconhecida por sua covardia? Perguntou a si mesma se não se tratava de uma pontinha de esperança lá no fundo do seu peito. Esperança de que tudo mudasse; de que as coisas se tornassem melhores com o tempo; de que todas aquelas frases de inspiração e encorajamento fizessem sentido finalmente. Mas, também podia ser apenas aquela espera eterna de que ele voltasse. O único ser que entrou na vida dela e a fez feliz de verdade.

Lembrou-se daqueles dias em que acordava e lá estava ele: deitado de bruços, o cabelo bagunçado e o ronco baixo que mais parecia música aos seus ouvidos. Lembrou-se das vezes em que ela era acordada com um beijo na testa, um sorriso amarelo bem na sua frente e um prato cheio de frutas para o café da manhã. Lembrou-se ainda do primeiro beijo. Ah, aquele beijo. Ela nem sabia como se sentir ao lembrar: se chorava por ser algo impossível agora ou se sorria por ter sido tão lindo.

Era a sexta declaração de amor dele para ela. Diamond nunca fora uma moça fácil de lidar. Ignorava todos os garotos que por ela se interessassem. Não porque não quisesse se sentir atraente, mas porque tinha medo do que poderia vir a ser, a acontecer. E de fato, aconteceu.

Walter lhe trouxe flores; Diamond pisou em cima delas. Walter comprou-lhe uma caixa de chocolate importado; Diamond jogou dentro do bueiro que ficava na frente de sua casa. Walter lhe trouxe seu sorvete favorito; Diamond cuspiu nele e ignorou toda aquela baunilha congelada. Walter sabia da paixão dela por fotografias e deu-lhe uma câmera digital para ela guardar as belas paisagens da natureza; Diamond jogou-a dentro do rio; Walter fez um desenho lindo de Diamond sorrindo graciosamente, mas ela picou o papel em pedacinhos. Na sexta tentativa, ele não trouxe nada nas mãos. Sempre chegava com algo. Chegava sorridente e saía com as mãos abanando e o rosto com aquela expressão de dor. Dessa vez, veio chorando. Olhou dentro dos de Diamond e disse: “Eu não estou desistindo. Não se desiste de algo tão lindo, de alguém tão encantadora. Mas meu coração não aguenta mais ser tratado como flores pisoteadas ou como papeis picados. Eu te amo, Diamond. Mas não quero me sentir assim, não consigo mais.”

Diamond o olhava sem entender o que aquelas palavras significavam. Observou-o virar as costas e se afastar. Seu coração apertou. Não poderia permitir. O que ele estava fazendo? Ele não a amava? Por que estava indo embora? “Ele não pode me deixar. Não pode!”, pensou. Correu atrás dele e o entrelaçou em seus braços. Ele correspondeu com aquele beijo, o primeiro beijo da vida dela, o beijo mais lindo de todos: suave, doce e apaixonado.

E ambos sorriram.

Após essa linda memória, Diamond saiu do seu transe, devido a um barulho alto na estação. O quarto havia acabado de passar. Ela o ignorou. Ainda não acabara. Era a vez da memória sofrida. Automaticamente, foi transportada para o dia do funeral dele.

Seu maior amor, que costumava ser sempre tão forte, encontrava-se de olhos fechados, envolto por flores e velas, totalmente impotente. Os parentes e amigos de Walter choravam. Mas ela não chorou no seu funeral. Na verdade, ela não sentiu nada. Seu rosto era uma pedra. Nenhuma expressão. Os seus olhos eram quase imóveis. Ela ficou lá, apenas olhando para ele. Sua mãe falava com ela, seu pai parecia fazer o mesmo, os amigos mexiam os lábios constantemente, mas ela não ouvia nada. Após Walter ter sido enterrado, alguém a levou em casa. Ela não dormiu naquela noite. Nem na seguinte. Nem na depois desta. Passava o dia tentando entender. Procurando respostas. Às vezes, cansada daquele esforço intelectual, procurava se distrair. Tentava ler seus autores favoritos. Não conseguia se concentrar. Tentava fotografar os beija-flores na roseira do seu quintal, mas tudo era preto e branco. Tentava escrever algum poema, mas só conseguia escrever a inicial do nome dele.

E agora estava ali.

Não suportaria mais aquilo. Aquela vida. Aquele vazio. Aquela tristeza. Tristeza era o que estava sentindo e, quando percebeu isso, ela chorou. Chorou todas as lágrimas guardadas desde o dia em que Walter descobriu seu câncer. Chorou como se o mundo todo não fizesse mais sentido. Chorou.

As pessoas na estação a encaravam, sem entender o que ela estava fazendo, sentada ali sozinha e distante de todo mundo. “É só mais uma louca.” Alguém gritou. Olhavam desconfiados. Aquela cena parecia penosa para algumas pessoas. Mas ninguém fez nada.

Já havia passado mais outro, o que totalizava cinco oportunidades perdidas no mesmo dia.

O que ela havia feito para merecer aquilo? Antes de Walter, ela não era nada: não era feliz, mas também não se considerava triste. Ele apareceu. Ela mudou. Seus dias pareciam sempre iluminados. Seu coração era pura alegria. Em menos de um ano, lá estava ela: perdida, sozinha e arrependida. Arrependida de ter humilhado Walter por tanto tempo; de não ter aproveitado aqueles dias para estar na companhia do seu amado por mais alguns meses; de não ter se permitido amar antes, bem antes. Apenas arrependida por ter escolhido tantas opções ruins, quando alternativas melhores estavam ali ao seu alcance.

Um barulho. Lá vinha sua sexta oportunidade. Não a desperdiçaria. Poderia escolher mais uma vez, não sabia se essa se encaixava nas opções ruins ou boas, mas a escolheria de qualquer forma. Levantou-se ainda em prantos. Os olhos embaçados pelo rio que brotava dos seus olhos. Viajaria. Partiria para uma nova vida. Mudaria tudo. Escaparia pela última vez. Desistiria pela última vez.

Deu alguns passos largos e rápidos na direção dos trilhos, o sexto trem chegou e ela se foi.

Na estação, as mesmas pessoas que a chamaram de louca e nada fizeram por ela gritavam horrorizadas ao ver a quantidade de líquido vermelho capaz de sair do corpo de uma única mulher.