Uma História com Tempero
Uma História com Tempero
Há diversas histórias, aliás, todo mundo tem uma história para contar. Eu também tenho a minha. Ela é diferente, única, quase um segredo. Penso que seja a primeira história temperada, tem aroma de azeite e ervas finas. Por ser especial, eu a mantenho numa panela bem tampada e cada vez que sinto vontade de revivê-la, levanto a tampa devagarzinho, dou um suspiro profundo, fecho os olhos e revivo na alma a última ceia de natal.
Minha mãe! O sorriso do tamanho da vida levando à mesa a panela fumegante, transbordando de sabor.
-Veja que maravilha de panela, tudo fica perfeito, não gruda nada, excelente para se fazer um bom fricassê!
Fricassê? Nome pomposo para se dizer purê de batata apurado no creme de leite.
Pouquíssimas vezes ouvi minha mãe mentir. Para ser sincero nunca a vi mentir, porque mãe não mente, ainda que seja tão humana como qualquer um de nós e também morre! Acho que esta foi a primeira vez que a vi mentir. Não é verdade que esta panela não gruda nada! Nela ficou grudado, o seu sorriso, as suas mãos, sua voz, e não há nada que possa limpar dela estas memórias! Que mentira gostosa meu Deus!
Veja, não é uma história alegre e nem triste. É apenas uma saudade e como só as pessoas especiais deixam saudades, quero que ela seja um banquete de lembranças agradáveis, uma sinfonia de vozes, de gestos expansivos, de risos. Quero que ela seja uma ceia de Natal. Uma mesa imensa e no centro dela, misturada a outros pratos e travessas, a panela de fricassê! Filhos, genros, noras, dezenas de netos e uma mãe contando outras histórias tão saudosas quanto esta que eu conto agora.
Esta panela certamente serviu outros sabores desenhados pelas mãos mágicas de minha mãe. Mas só um ficou impregnado para sempre em suas bordas internas e nos corações de quem o saboreou.
Alguns meses depois daquela ceia de Natal, recebi a notícia de que minha mãe tinha adoecido, entrou em um profundo processo de depressão. Ela se fechou em si mesma. Não tive mais oportunidade de experimentar o seu tempero. Para não perdê-lo para sempre, em forma de lembranças, fechei-o na panela de fricassê.
Quando a minha mãe foi embora, eu e meus irmãos nos reunimos em torno daquela mesma mesa e, como um trato de união eterna, cada um de nós escolheu um objeto que mais a lembrasse. Assim foi quando meu pai partiu, assim ela desejava. Alguém escolheu um quadro, esqueci de dizer que minha mãe gostava de pintar, outro um par de brincos, uma toalha de mesa, um rádio, fotografia, um anel ... Eu? Olhei para cima do armário. Lá estava ela, a panela de fricassê exatamente como minha mãe a deixara. Naquele momento, vi muito mais do que a panela! Vi seu sorriso, ouvi sua voz, senti o aroma do seu tempero, um burburinho de festa, de festa de Natal! Peguei–a, ela é minha. Não sei porque, mas uma imensa alegria invadiu-me, ri, ri muito. Pensaram que eu enlouquecera. É minha, minha! Ela e todas as lembranças que ela me traz. Trago-a sempre tampada sobre a mesa de jantar.
MAReis