Diferente

Outro dia estava eu numa ferragem. Na minha frente reparei, discretamente, no rosto de um menininho dos seus 10 anos, que era em parte vermelho de uma provável queimadura. Ele parecia ser uma criança introvertida. Pude perceber isto pela cabeça constantemente baixa e pelo comportamento excessivamente disciplinado para a idade. Pensei que ele estaria um pouco cansado em ser discriminado por ser “diferente”. Imagino que as pessoas o olham na rua e admiram sua queimadura com indiscrição. Imagino que os seus colegas de escola o façam lembrar a todo o momento que ele é “diferente”. Talvez o chamem por um apelido maldoso. As crianças aparentemente repetem, de modo amplificado, o comportamento dos adultos, como já escreveu William Golding em “O senhor da moscas”. Aparentemente elas eliminam a hipocrisia adulta e vão direto ao assunto que as aflige. São elas que apontam, por isso, que o rei está nu. E são implacáveis.

Alguns minutos depois passa pelo caixa da ferragem um senhor de meia idade com um defeito no pé direito. O defeito o faz usar o tênis de modo peculiar, pois ele apóia o pé apenas nos dedos, a sola fica quase toda no ar. Notei que o menininho ficou muito impressionado e seguiu, enquanto pôde e com indiscrição, o movimento daquele senhor.

Olhando a cena pude vislumbrar o paradoxo: o menino fazia com o senhor o que ele certamente não gostava que fizessem com ele.

Isso me fez pensar numa atitude muito comum, entre nós civilizados:

Quantas vezes julgamos inconvenientes os atos de alguém e os combatemos utilizando os mesmos atos?

A armadilha é: como podemos combater um comportamento se justificamos o seu uso fazendo o mesmo durante o combate?

Se alguém me rouba a carteira, e eu considero isso um ato indigno, então eu posso roubar a carteira dele se tiver oportunidade?

Não estaria eu então justificando o primeiro ato, o ato do outro, justificando a indignidade?

O ato deixa de ser indigno quando se tem uma boa justificativa?

A justificativa do outro em roubar-me a carteira não será boa também?

Recusar-se a fazer o mesmo que ele é ser “trouxa”?

Outro ponto interessante é a nossa curiosidade sobre o que é diferente. Parece que desejamos que tudo permaneça exatamente como sempre foi. Talvez isso nos traga uma sensação de longevidade, de imortalidade. Quando algo de “diferente” se apresenta ficamos curiosos e analíticos. Se aquilo for alguma coisa que não temos coragem de aceitar ou repetir em nós, então reagimos. Na melhor das hipóteses com uma piadinha maldosa. Na pior, com violência. Quando não conseguimos destruir o “diferente”, depois de muito combate, então temos um método terrível e infalível de acabar com aquilo: adotamos aquele mesmo modo, aquele mesmo comportamento e ele, portanto, deixa de ser diferente. E acabamos com o inconformismo. E acabamos com a diversidade.

Às vezes a curiosidade sobre o “diferente” se manifesta morbidamente nos acidentes. Penso que é isso o que explica porque as pessoas têm compulsão em parar para ver as desgraças nas estradas. Talvez seja mais pelo inusitado, pelo “diferente” da cena. Talvez seja o mesmo impulso que nos leva a olhar alguém de chapéu amarelo-ouro.

Mas, a natureza continua nos ensinando que é a diversidade que vai nos manter vivos.

É a natureza quem nos ensina também que é muito difícil ser apenas humano.