Um conto dos anos 2000 (Versão em português)

Estou ciente de que o presente texto haverá de trair, e muito, minha idade e o período de tempo no qual cresci, e que muito provavelmente os mais velhos e mais novos não compreenderão a magia inerente a este período, mas reprimiria uma página deveras colorida (e saudosa) de meu desenvolvimento criativo de maneira bastante ingrata se não o trouxesse a público com o carinho que merece. “Mas por quê?”, talvez estejam se perguntando. É uma surpresa, por ora…!

Muito que bem. Viajaremos bastante no tempo desta vez, para um tempo primevo onde este que vos escrevia nem ao menos escrevia – por aquela época, ainda não passava de uma mera criança, solitária e um tanto quanto acima do peso, entretendo-se com jogos eletrônicos e explorando o mato sem cachorro que era a Internet dos anos 2000. Minhas leituras então no máximo se resumiam em histórias em quadrinhos e à saga “Harry Potter” (que, não nego, foram grandes influências a seu modo), e meu maior passatempo era procurar por histórias sobre meus personagens favoritos (as famigeradas fanfics) e animações em Flash – mesmo que, à época, meu inglês ainda não tivesse atingido a perfeição e eu não compreendesse devidamente 9 das 10 que visse, se me deparasse com qualquer personagem de jogo eletrônico (em particular aquela famosa dupla de encanadores italianos, bons e velhos amigos meus) ou qualquer outro personagem estabelecido em cenários não característicos, era certo que clicaria para ver. E reparem bem: como o YouTube ainda não existia, meus locais de preferência eram os pioneiros Newgrounds e o Video Game Director’s Cuts.

Recordo-me que neste último passava mais tempo, por ter mais animações com personagens que reconhecia e por serem, geralmente, mais elaboradas e de maior qualidade, feitas por uma única pessoa: Randy Solem, de cujo nome nunca me esqueci em todos estes anos, mesmo que há mais de duas décadas eu já houvesse perdido o interesse em retornar a ele. O Sr. Solem jamais poderia ser esquecido de qualquer forma, pois de todas as suas animações, uma foi responsável por iniciar minha carreira…

Sim – esta era a surpresa que tinha a comunicar aos gentis leitores, e que certamente abalará a percepção que, por tantos anos, tentei transmitir sobre mim mesmo: o primeiro “livro” que escrevi, tão somente pelo mero prazer de fazê-lo e por ter ficado tão impressionado, foi uma fanfic inspirada na animação que, porventura, é a mais famosa do Sr. Solem, “The rise of the Mushroom Kingdom”, embasada nos jogos dos supracitados encanadores – salvo engano, contava eu com meros 11 anos.

Mais uma vez, serei forçado a me desculpar aos leitores de mais idade que não cresceram sob os auspícios da era dos jogos de 16 bits, mas farei o possível para ao menos tentar ser compreendido. A série “Super Mario” é célebre por sua temática de fantasia leve ambientada em reinos de contos de fadas com criaturas maravilhosas e por vezes mágicas, e é caracterizada por seus enredos simplistas de bem versus mal. “The rise of the Mushroom Kingdom” possui, por sua vez, uma história com temas muito mais complexos e deveras diferentes daquilo que eu estava habituado a ver em meus estimados jogos. Seu icônico protagonista Mario é cruelmente assassinado(!), levando todo o titular Reino Cogumelo (ambientação de grande parte dos jogos da franquia) a declarar guerra contra seus usuais inimigos, os Koopas. As cenas de batalhas são viscerais e cinematográficas – sangue e entranhas não são poupados, apesar dos momentos mais sanguinolentos serem contrabalanceados por momentos de humor mais leve e até mesmo por um drama capaz de levar às lágrimas: logo durante os primeiros minutos, onde o famoso Mario é morto e sepultado, julgo que seria impossível não se emocionar e simpatizar com estes personagens pixelados rearranjados para fazerem diferentes ações – ao menos foi o que pensei, ao assistir a tudo pela primeira vez há quase 20 anos. Ainda hoje penso, pois depois de ver tudo de novo, apesar de um certo estranhamento, consegui me relembrar de como esta animação foi tão importante para mim.

Nunca conheci, tampouco me comuniquei, com o Sr. Solem, que, infelizmente, veio a falecer em 2012 – mas seria vergonhoso nunca agradecê-lo por ter me proporcionado com uma infância tão boa e por inspirar meu primeiríssimo escrito, hoje guardado em muito boas mãos. (Obrigado pelos peixes, Jane!) Este que vos escreve, entre uma adaptação de uma fanfic animada e um romance em versos em estrofe Onegin, precisou andar muito e muito… Afinal, as mais longas jornadas sempre se iniciam com um único, pequeno passo. (E, ao fim do dia, tenho um maior carinho por este manuscrito infantil do que pelo meu romance de estreia publicado por uma editora propriamente dito.) Não só a mim, talvez o Sr. Solem tenha inspirado várias outras pessoas de modos diferentes com suas animações, e presunçosamente falando por todos os millennials, esperamos que ele descanse em paz com a certeza de que os anos 2000 não teriam a mesma essência que tiveram, e da qual sentimos tantas saudades, sem suas animações tão graciosas.

(São Carlos, 16 de julho de 2024)

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 20/08/2015
Reeditado em 17/07/2024
Código do texto: T5352863
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