Chico Buarque, futebol e Tigrão
A vida não anda fácil, como de costume. As contas chegam sem atrasar e se amontoam sobre a mesa de mármore da cozinha. As crianças precisam comer. A rotina começa cedo. Antes de amanhecer, é preciso estar de pé para colocar os filhos para o caminho da escola antes de pegar primeiro ônibus lotado do dia. Quando chega a casa, só pensa em beijar a esposa, assistir ao Jornal Nacional na sala ao lado da família e se deitar na cama para descasar de mais um dia normal.
“Todo dia ela faz tudo sempre igual; Me sacode às seis horas da manhã; Me sorri um sorriso pontual; E me beija com a boca de hortelã [...] Seis da tarde como era de se esperar; Ela pega e me espera no portão; Diz que está muito louca pra beijar; E me beija com a boca de paixão”. Esses trechos da música “Cotidiano”, de Chico Buarque, se encaixam perfeitamente no primeiro parágrafo dessa história. Só que as palavras desse texto se referem a outra canção de Francisco Buarque de Hollanda.
Segunda-feira, terça-feira, quarta-feira. Assim, bem lentamente, vão passando as páginas repetidas da semana. João? José? Luís? Marcelo? É no domingo que as formalidades do dia a dia ficam de lado e ele atende pelo apelido de Tigrão. Não interessa qual é seu nome. O importante é que hoje é o dia mais importante da vida dele. A rotina descrita anteriormente pode ser verídica. Seria Tigrão um médico? Um açougueiro? Um advogado? Ou um pedreiro? Não faz a menor diferença. Um final de semana após o outro, aquele homem esquece os problemas, veste a camisa listrada verticalmente em branco e preto com o número 9 nas costas e vai se divertir no campinho do distrito de São Sebastião, na Baixada Campista.
Com a camisa alvinegra, Tigrão ajudou o Esporte Clube São Sebastião a chegar à grande final do Campeonato Campista da Baixada. Uma campanha irrepreensível na fase de classificação, com cinco vitórias, cinco empates e apenas uma derrota. Na semifinal, o adversário foi o Paraíso, de Tocos. Não parecia ser um jogo difícil. O São Sebastião havia goleado o mesmo adversário por 6 a 0 há menos de um mês. Mas o futebol tem dessas coisas. O placar apontou 1 a 1 e a decisão foi para as cobranças de pênalti. Tigrão pôde comemorar. Vitória do seu time por 5 a 3 nas penalidades.
Mas esse domingo seria diferente de tudo na vida de Tigrão. O dia começou como outro qualquer nessa época do ano. A temperatura amena combinou perfeitamente com o céu cinza que se arrastou até o início da tarde. Acostumado aos campinhos de Tocos, Mineiros, Vila Manhães e Dores de Macabu, Tigrão estava prestes a pisar no gramado do Estádio Ary de Oliveira e Souza, o principal palco futebolístico da cidade. O mesmo gramado onde, por exemplo, Arthur Antunes Coimbra, o Zico, também pisou. Era chegado o momento da final do campeonato. A partida estava marcada para as 14h30, mas o jogo dos aspirantes atrasou quase uma hora. A demora só aumentou ainda mais a ansiedade.
Finalmente havia chegado a hora do grande momento. Há cinco anos sem ganhar um título, era a chance de o São Sebastião ser campeão. Do outro lado, estava a Ponte Preta, de Espinho, atual bicampeã da competição. Estava caindo uma chuvinha fina e fria. No aguardo do apito inicial do árbitro no círculo central, não importava os quilos a mais na barriga, a cor da camisa vestida ou qual seria o adversário. Era a final da Copa do Mundo para Tigrão.
Com a bola rolando, o centroavante até tentou se movimentar, sair da área para buscar o jogo e arriscar algumas finalizações de longa distância. Era a chance da vida de Tigrão, um anônimo de vida pacata e comum. A torcida compareceu em grande número e a imprensa estava presente para fazer a cobertura do jogo. Imagina só se Tigrão faz um golaço de fora da área e garante o título para seu time. De mais um João, passaria a ser o rei de São Sebastião. Poderia se ver na televisão na segunda-feira, ser reconhecido nas ruas e no trabalho, além de ganhar um almoço grátis. No entanto, o sobrepeso fez a diferença. Tigrão cansou rápido e até virou chacota nas arquibancadas. A cada bola lançada em velocidade, o felino colocava um palmo de língua para fora da boca. Não aguentou o pique de um campo com dimensões maiores. Parecia correr sem sair do lugar.
O técnico logo percebeu a falta de condição física e substituiu o jogador no segundo tempo. De tão cansado, não teve forças para deixar o gramado e saiu caminhando. Seria o fim para o atacante do São Sebastião? Tigrão estava exausto, logo após sair de campo, se recostou nas grades do alambrado e pegou o copo de cerveja de um torcedor. Secou o recipiente em dois longos goles. Depois, ainda aceitou o meio cigarro acesso de outro torcedor. Ali mesmo, ao lado do banco de reservas, saciou suas vontades, como se estivesse no campinho de São Sebastião com os amigos. E Tigrão estava. A partida terminou empatada e Tigrão teve que ver de fora seu time ser derrotado nos pênaltis. A Ponte Preta foi campeã, mas tudo é diversão. É futebol.
No final, Chico parou de tocar “Cotidiano” para cantar “O Futebol” em notas de vida real. “Para estufar esse filó; Como eu sonhei; Só; Se eu fosse o Rei; Para tirar efeito igual; Ao jogador; Qual; Compositor”. Naquele momento, assim como em todos os finais de semana, Tigrão era o rei e compositor de uma história de vida única. É verdade que não vi a linha de passe de Mané, Didi, Pagão, Pelé e Canhoteiro, mas vou poder contar aos meus netos que vi Tigrão.