Croniconto: a refeição

12:09h. Estou no mesmo lugar onde almocei há três dias. Gosto deste lugar. Refeição barata e tempero maravilhoso. Próximo de casa. Enquanto aguardo o meu pedido chegar, me fixo na percepção do ambiente, sobretudo nos seus detalhes mais ignotos. São raros momentos como este que conseguimos captar em lampejos de fragmentos a atmosfera do lugar e do tempo. A minha Heineken chega e começo a tomar os primeiros goles. Percebo, então, que os ruídos à minha volta querem me dizer algo. Ecos do jornal do meio dia chegam misturados ao tilintar dos talheres de outros solitários que almoçam ao meu redor. Há também uma festa de cheiros no ar que exige certo esforço de minha parte para poder identificar e distingui-los. Percebo as cores do açafrão, mesmo antes de enxergar a sua imagem. Consigo visualizar de olhos fechados a fumaça que escapa de uma linguiça cozida no feijão. Poderia aqui elencar uma diversidade de gostos somente a partir dos cheiros que exalam num simples toque dos dentes e da língua dos seres que almoçam. É como assistir a uma reprise da Festa de Babette aqui ao vivo. Presto atenção nisso tudo e também penso um pouco no quanto aquele instante é de suma importância na vida da gente, seres humanos famintos e clientes daquele estabelecimento do gênero alimentício. Lembro ainda de que na última vez em que estive aqui, quem me trouxe as porções e os espetinhos foi o próprio dono do restaurante, que pedia desculpas pelos transtornos devido à ausência de um dos seus funcionários que havia viajado para o funeral de sua mãe. Hoje, é o mesmo garçom que me atende com o mesmo sorriso na face, cuja figura é a que sempre me atendeu. É complexo entender o que se passa com o outro. Pois, esse camarada mal havia voltado de uma viagem para enterrar o corpo de sua mãe e já se encontrava na sua obrigação profissional de ter que sorrir para os clientes, além de atendê-los como se nada houvesse ocorrido. Tudo pela satisfação e boa refeição dos que ali almoçavam. Situação similar encontra o palhaço que precisa contar piadas no palco, mesmo que a sua família esteja passando fome em casa. Logo em seguida, vejo o outro garçom, que também sempre é muito simpático, despontar na direção de minha mesa, fazendo malabarismo com a bandeja onde se encontram as minhas porções. Em alguns instantes espeto o garfo na deliciosa salada colorida e o tempero agridoce daquela iguaria toma conta de meu paladar, me levando a outra viagem de cheiros, sabores e texturas. Não consigo mais pensar no instante enquanto como.

Helder S Rocha
Enviado por Helder S Rocha em 14/08/2015
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