O sorriso da morte

A noite estava mais escura do que o normal. A lua estava encoberta por nuvens pesadas, pois uma tempestade vinha se aproximando. Uma vez ou outra, em breves instantes e por um leve resquício de vento, via-se o brilho prateado da lua entre as nuvens, fugazmente.

Naquele canto escuro da praça nada se movia. Nenhum papel no chão, nenhuma mísera folha de alguma árvore. Cada árvore da praça, exceto àquelas que a luz amarelada dos postes iluminava no lado oposto ao terreno, assemelhava-se a espantalhos encardidos, amarronzados, cada uma dispondo de braços – que pareciam galhos – retorcidos e secos. Com pouquíssimas folhas e sem flor alguma.

O silêncio era total e absoluto. Parecia que naquela noite todos os freqüentadores da praça pressentiam que algo de escabroso pudesse acontecer. A praça estava escura, deserta, silenciosa.

Porém, ali, no canto atrás de um bloco de concreto que homenageava a construção da praça, longe dos postes de iluminação e da entrada principal, ele se escondeu.

Agachara-se naquele canto há horas. Estático. Observando. Sem pensar. O único movimento que ele vazia, porque involuntário, era o movimento de subir e de descer do seu diafragma. Respiração superficial, seus olhos focados e atentos; esperando sua próxima vítima.

Ele saíra de casa decidido. Levasse o tempo que fosse, só regressaria quando concluísse o seu intento. E o seu intento, ali, naquela noite escura, era sangue, carne e ossos. Portanto, matar.

Agachado ao lado do bloco de concreto, ele relembrava sua infância e juventude. Filho único seu pai e sua mãe foram assassinados por um vizinho. Por motivos estúpidos e banais. Após o assassinato dos seus pais ainda na tenra infância, sua única salvação fora a sua adoção por um viúvo idoso, alquebrado e sem filhos.

Aquele viúvo o alimentou. Deu-lhe casa para morar. Deu-lhe carinho constante. Por mais atenção que ele recebesse e, recebeu muita, jamais conseguira chamar o viúvo idoso de pai. Por mais amor que recebesse a consciência de sua adoção lhe impedia. Ele não era seu pai. Ele não poderia ser sua mãe. Era, ele aceitava isso, no máximo, um bem-feitor. Mas nem isso ele sentia-se capaz de dizer ao viúvo. Pensava, apenas.

Cresceu obtendo todos os privilégios possíveis que uma boa educação pode proporcionar. E era grato por isso.

Quando seu bem-feitor percebeu que o seu conhecimento era insuficiente para uma completa formação, proveu-o de um professor particular, quase um tutor. O professor, dali em diante, encarregar-se-ia do término de sua educação, formação, treinamento e aulas de etiqueta.

Três vezes por semana, durante dois anos, ele foi educado e treinado. Nesse período, nunca houve feriados, datas festivas, comemorações, natais; nada. Sua educação era prioridade. Os amigos foram afastados pelo seu bem-feitor.

Ele sempre soube da sua boa sorte, apesar da morte dos pais. Contudo, usufruiu cada minuto disponibilizado pelo seu professor. Sorveu todo o conhecimento apresentado.

Só havia uma questão que nunca fora resolvida: sua compulsão em matar. Seu instinto assassino. Num momento de fraqueza, quase contou seu segredo para o professor. Mas, não. Ele não saberia explicar.

Num dia de lucidez repentina, mudou a aplicação do seu aprendizado. Transformou cada conhecimento, cada comando, cada técnica para um único objetivo: atacar.

Por vontade férrea, esculpiu cada músculo do seu corpo. Lapidou cada falha para que não mais acontecesse. Fez de si mesmo uma máquina destruidora pronta para matar. Ou morrer.

Embora tenha recebido conhecimentos corretos e tivesse nobres sentimentos, elegera seu instinto a sua mais fundamental qualidade. Porque agir por instinto evitava explicações, teorias, elucubrações.

Loucura? Não, ele pensava. Julgava-se bom no que fazia, era o seu talento natural. Loucos vivem numa fantasia embraquiçada ou esfumaçada. Ele vivia na clareza do seu espírito. E isso bastava.

E todo o aprendizado levara-o até ali. Naquela praça deserta, numa noite escura e fria.

Ele parou de contar suas vítimas quando matou a vigésima. Para ele era desimportante saber a quantidade de suas vítimas. “Sou um assassino”- pensava- “não sou contador. Não me interesso por balancetes”.

Tirando o assassino, coisa que de fato ele se orgulhava de ser, a única outra coisa que admitia para si mesmo e concordava era ser também um colecionador de ossos. Pois, depois de destripadas, guardava todos os ossos de suas vítimas na mesma cova que ele mesmo cavara, no quintal de casa.

Quando matava, sempre à noite, arrastava o cadáver do infeliz por todo o quarteirão, atravessava todo o extenso quintal da casa e, do alto, na janela iluminada do quarto, seu bem-feitor o via, sorvendo o sangue do infeliz, comendo a carne e, depois de saciado, enterrando os ossos.

Seu bem-feitor, no começo, nas primeiras vítimas, olhara-o com espanto, tristeza, náusea. Mais tarde, entretanto, acostumou-se e acabou entendo.

No dia seguinte, sentavam-se à mesa para o desjejum e não comentava nada. Nenhuma sobrancelha levantada. Sabia dos pais assassinados do seu filho adotivo. Não apoiava o caminho seguido pelo seu filho do coração, mas não o repreendia. E assim foi desde então.

A tempestade não veio. A lua prateada, redonda, solitária, agora estava visível. O céu sem nuvens.

Se a próxima vítima demorasse a aparecer, ele teria que providenciar outro abrigo. Porque agora com a claridade da noite, ele estava exposto.

Foi pensar em mudar sua posição, que ele percebeu um movimento. As folhas secas dos galhos caídos ao chão vibrando. Passos. Seu próximo cadáver – porque em sua cabeça tudo já fora consumado – caminhava feliz e distraído, sem imaginar o perigo iminente que corria.

“Calma. Calma. Não se afobe!” - pensou.

Ele se encolheu. Retesou todos os seus músculos. Prendeu a respiração.

Uma leve sombra passou em frente aos seus olhos. De longe ele viu.

Um gordo. Chacoalhando suas ancas e suas banhas de um lado para outro, de acordo com suas passadas ao caminhar. Sujo. Cinzento. Fedido. Depois de um dia de trabalho, talvez cansado, ou um mendigo?

Ele fechou os olhos, e pensou no seu único mantra pessoal decorado: “Mate!”.

Subitamente, num átimo, ele de um pulo longo, dentes brancos arreganhados, e gemeu:

-- Miau! Miau!Miau!!!!!!

O gato aterrizou já abocanhando o pescoço daquele rato gordo e cinzento, sem defesa; matando-o sem maiores dificuldades.

Levou sua vítima para o seu quintal. Comeu-lhe a carne, sugou-lhe o sangue e enterrou-lhe os ossos, como sempre fez. E, depois, lambeu os beiços.

Da janela iluminada, vendo toda aquela cena, seu bem-feitor dizia para si mesmo:

-- Quanto dinheiro gasto com ração, veterinário, domador... e esse filhodaputa vai para rua caçar ratos! Desgraçado!

-- “Miau”! – o gatinho deu o sorriso da morte.

Alex Mendez
Enviado por Alex Mendez em 13/08/2015
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