Cidade Vazia
Cheguei ao hospital eram sete e meia da manhã, e ele já estava ao lado do balcão da recepção com sua voz de barítono, grave mas num tom alto. Fizeram a minha ficha e disseram que eu podia aguardar pelo o pessoal da triagem e pelo o atendimento médico.
Pessoas gemendo (em vias de desmaiar?); crianças pequenas chorando; velhos largados pelos cantos (conversando com seres invisíveis!); bancos com pintura descascada; paredes manchadas e rabiscadas com vários nomes de pacientes masoquistas anteriores.
Um segurança fanho gritando o nome dos sorteados.
Depois de reparar tudo (como costumo fazer), sentei-me num canto e abri o meu livro. Sou escaldado. Tenho sempre um livro à mão: fila de banco, de lotérica, na barbearia, sala de espera de oficina e de dentista. Espero ter um livro para locação no purgatório...
Não havia passado quinze minutos, ele começou novamente com sua voz de barítono, falando mais alto do que a boa educação recomenda. Olhei o sol da manhã pela vidraça e pensei: "Deve ser mais um dia normal por aqui."
Um rapaz negro, bermuda e camisa puídas, magro, cicatriz no rosto que a barba por fazer não escondia, dentes bons e claros (!?), pele suja, perebas nas canelas, arrastando nos pés chinelas de dedo arrebentadas. Nos braços carregava um cobertor encardido de cor amarelo-queimado, apenas. Deitava e levantava, levantava e deitava; desassossegado.
-- Cadê o atendimento? Estou aqui faz mais de duas horas. Meu nome é Figueiredo. Sou de Tocantins, mas morei em Nova York e na Califórnia. Minha linha pessoal é mais para a do Renato Russo. Por que tantos seguranças e pessoal de limpeza (lavavam o chão na hora), e tão poucos médicos? Não deveria ser o contrário? Cadê o atendimento?
Todos o olhavam disfarçadamente, contudo ninguém ousava argumentar. Cada um preferindo o seu mundinho particular e vazio.
Veio passando uma mulher com um bebê no colo.
-- Qual o nome do neném?
-- Sofia -- a mulher respondeu e continuou a passar, sem olhar.
-- Sofia? Bom! Sofia quer dizer sabedoria, filosofia quer dizer amor à sabedoria. Sou ex-universitário.
Deu um pulo. Levantou-se pela quinquagésima vez. Veio para o lado da sala onde eu me sentara. Havia outros bancos vazios, mas...
-- Ei, você aí? O que você está lendo? -- era comigo: -- Cem Anos de Solidão? Memórias Póstumas de Brás Cubas? O Cortiço?
Todos que ali estavam viraram-se na minha direção.
Caramba! Já li os três. Mas não; eu lia Fernando Sabino. Pelo visto, assim como eu, ele também gostava de ler e de sentar-se pelos cantos; sentou-se ao meu lado. Não me importei, pois já estou acostumado
Eu tenho um ímã interno defeituoso, um dom ao contrário, por assim dizer. Têm pessoas que, naturalmente, atraem boas oportunidades, entrevistas de empregos, vagas disponíveis num estacionamento lotado, dinheiro, mulheres, sorte. O meu poder de atração suga apenas sobrinhos, velhos, bêbados e maltrapilhos.
Sentou-se, encolheu-se no banco abraçando os joelhos e abaixou o volume da voz. Repetiu tudo: Nova York, Califórnia, atendimento demorado, época de universidade, Tocantins (onde mora sua família, e que viajaria para lá após a consulta), o batalhão de seguranças. Conversamos longamente.
Lembramo-nos de perguntar o motivo de nossa ida ao hospital somente quando o segurança fanho fanhou o meu nome. Pena. Eram apenas onze e cinquenta. Tínhamos ainda muitas coisas a serem ditas.
Ele: Por que você está aqui, mesmo?
Eu: Gastrite. E você, Figueiredo?
Ele: Tenho aids. Mas estou aqui porque estou defecando e mijando sangue. Sabe, eu bebo muito.
Eu: Sinto muito!
Ele: Eu também.
Dei-lhe o livro (que não cheguei a ler) de presente. Quem sabe, talvez, para distraí-lo um pouco na viagem de regresso para casa. O título? Cônicas de Nova York – A cidade vazia.
Eu e o meu dom! Mais um dia normal, portanto.