Minha casa
Desde que sai de Mimoso, em minha juventude, e assim lá se vão para mais de trinta e cinco bem vividos anos, nunca mais voltei à casa onde nasci e vivi toda minha infância e até minha partida – logo depois, minha família mudou-se para Cachoeiro, a casa foi vendida por meu pai, o tempo foi passando, eu correndo pelo mundo e, quando voltava a Mimoso, sempre por alguns poucos dias, não encontrava tempo para ir até lá.
Em verdade, tenho que reconhecer, houve um pouco de preguiça e até de covardia por saber que ela não mais era “minha casa”, os móveis que a decoravam não mais seriam os nossos de que conhecia cada detalhe, que as pessoas que a ocupavam não seriam meus pais e irmãos, que nada mais restava ali de meu, somente lembranças, doces lembranças.
Nos últimos tempos ela ainda mais se descaracterizou como “minha casa”, já que lhe fizeram algumas obras externas, recuando-a em relação à rua, tirando as janelas onde gostava de ficar sentado, admirando as meninas indo e vindo do colégio. Até mesmo seu número, talvez para alertar-me desta realidade, foi mudado, já nem mesmo mais é o 94.
Assim, por saber que em sua sala principal não mais estaria o piano de cujo teclado extraí as mais apaixonadas canções e chorei as minhas mais doces lágrimas de amor, que a grande mesa de mogno com a toalha de centro, de croché, feita por minha mãe não mais a decoraria, que ao canto da sala de refeições, contígua, não estaria meu pai, olhos fechados, semi-adormecido, coçando a cabeça e com o cotovelo apoiado na mesinha de vime, ouvindo o último capítulo de “Jerônimo, o herói do sertão”, voltar a ela, após tantos anos, certamente me faria sofrer.
Como voltar ao quarto que ocupei durante tantos anos, sem minha cama, minha cômoda, minha estante com os livros do colégio, sem a prateleira, ao canto, onde guardava meus mais preciosos tesouros – meus brinquedos, as últimas “invenções”, agora certamente ocupada por móveis estranhos, que nunca vi antes, que nada sabiam de meus sonhos, de meus planos?
A copa, certamente terá sido modificada, já não mais terá o piso de cimento avermelhado onde em tantas tardes de chuva dormi ouvindo o barulho das gotas no telhado e aos pés da máquina de costura Singer, com minha mãe, ao lado, pedalando-a num ritmo compassado que me embalava em meus sonhos.
Nesta mesma máquina, quantas vezes picotamos os ingressos para as sessões de cinema que organizávamos para a garotada da rua, cobrando 1 cruzeiro o ingresso para assistirem Branca de Neve e os sete anões e Chapeuzinho Vermelho, sempre as mesmas histórias lidas em voz alta por Lucinha, minha irmã mais velha, enquanto eu rodava a manivela da velha máquina Barlan.
Certamente, até a velha mangueira, em cujos galhos tantas vezes nos penduramos brincando de Tarzan terá sido cortada, não mais restando nem mesmo a grande pedra, ao fundo do quintal, e em cujo sopé eu construia as estradas por onde viajava com os meus carrinhos de brinquedo, com os postos de lavagem feitos de caixas de charutos e latas de azeite.
Nesta grande pedra,entalhei pequenos buracos que me serviam de apoio para subí-la correndo até o morro do Dr. Cisne para roubar mangas ou destruir as valetas que nos dias de chuva forte criavam cachoeiras em nosso quintal, inundando o bequinho que, hoje posso confessar, eu próprio obstruía a manilha de drenagem só para vê-lo alagado e pelo prazer de desentupí-lo, jorrando forte na calçada.
Na varanda, não estaria o coleirinho que meu pai adestrou e que ficava preso pelo pescoço, por uma correntinha ligada ao poleiro ao invés de em gaiola e que comia alpiste levantando com o bico a tampa de uma caixinha de madeira e tomando água no dedal que içava com os pés.
Ali, a ausência do canto de seu bicudo, que reconhecia os passos de meu pai chegando em casa e se alvoroçava todo, cantando alegre, do estardalhaço do melro que se encurvava eriçando as penas da cabeça para que a coçássemos, a falta do viveiro com os canários belga que ele tanto amava , certamente me emocionariam e me fariam sofrer, lembrando de tantos anos ali vividos.
Talvez por tudo isto jamais lá tenha retornado, deixando que ela seja eternamente habitada por minhas lembranças, por meus fantasmas.